NECESSIDADE DE NOS VERTIRMOS A ARMADURA DE DEUS.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

 

 

Necessidade de nos vestirmos da completa armadura de Deus, na batalha contra o mal Ef 6:10-18

Na seção que se inicia neste ponto, transparece a crença na existência do mundo dos espíritos maus, o que também aparece por todo p N.T. Essa doutrina, apesar de ser posta de lado por muitos modernos, nos países civilizados, tem sido comprovada por vários estudos no campo da parapsicologia, que mostram a existência de forças estranhas e poderosas, de natureza negativa, e que operam no mundo. Aqueles que rejeitam tais ideias, mui provavelmente o fazem por terem um ponto de vista limitado sobre a formação do universo, supondo inutilmente que o homem, em sua mente pervertida, pode explicar quaisquer fenômenos que de outro modo são classificados como demonismo. Todavia, vários fenômenos ultrapassam em muito a essa maneira de ver as coisas, e males de tipo grotesco e poderoso realmente existem, inteiramente à parte da própria mente humana pervertida, a qual, segundo estamos prontos por admitir, já é bastante maldosa.

O dualismo no mundo espiritual é ideia antiquíssima, alicerçada na experiência humana, que não pode ser abafada pela psicologia moderna, embora seja verdade que esse estudo tem aberto para nós a caverna proibida da mente humana, demostrando que muitos demônios, por muitas vezes, ali habitam. A tentativa de modernização do texto presente, como se Paulo estivesse querendo falar apenas sobre as forças em oposição do bem e do mal, sob o simbolismo de espíritos bons e espíritos maus, furta essa advertência de seu sentido óbvio.

O simbolismo envolve guerra; mas essa guerra ultrapassa em muito aos limites da mente humana, porquanto penetra até mesmo nos lugares celestiais, habitação dos espíritos bons e maus. O próprio homem é um ser espiritual, existindo outros seres de menor poder, como também de poder mais alto, até mesmo de poderes elevadíssimos. E alguns usam seu poder para o bem, mas outros dentre eles fazem-no para o mal.

Na seção perante nós, o propósito é de conferir-nos algumas exortações latas e gerais sobre a vida cristã, que é pintada como uma guerra espiritual. Esta seção serve para sumariar a vida piedosa prática, em vista das grandes bênçãos espirituais e eternas que nos pertencem por intermédio de Cristo. (Ver Ef 1:3,23). Em nossa vida cristã, somos forçados a tomar sobre nós os poderes e as virtudes cristãs para a batalha, que é intensa e prenhe de perigos. Nas primeiras epístolas de Paulo, parte desse pensamento é apresentado (ver I Tss 5:8,9 e Rm 13:12); mas aqui ele é lindo e completamente desenvolvido.

Ao escrever a presente epístola, Paulo se encontrava em meio à tempestade que se armava, a fim de intensificar a batalha entre o bem e o mal. Ele via que o firmamento se enegrecia, e já podia ouvir o choque de exércitos hostis, ante a aproximação do exército do mal. Não estamos em tempo de descanso, de lassitude, de preguiça. Por isso é que a Palavra de Deus nos conclama às armas espirituais. Pois armas espirituais comuns não bastam. Somente os crentes supridos de armas pelo General celeste podem dar-se bem e serem vitoriosos nessa luta e nenhuma peça da armadura nos foi dada para proteger as costas. Portanto, o inimigo precisa ser enfrentado de frente, sendo derrotado por um esforço e por uma resolução firmes.

Paulo queria que soubéssemos que a vitória sobre o pecado não é coisa pequena. E também não devemos imaginar que é a derrota provocada pelas más influências que podem destruir nossa experiência cristã. Para tanto, é mister o pleno desenvolvimento dos poderes espirituais e da vigilância; e aqueles que negligenciam sobre esses pontos não demorarão a cair vítimas do pecado e suas horrendas consequências. Toda a experiência cristã serve de comprovação disso. E é assim que aprendemos quão intensa e séria é a vida. O homem se desviou para longe de Deus, e somente o poder do próprio Deus pode trazê-lo de volta com sucesso, ao seu legítimo lar celestial, às suas possessões eternas, dentro das quais participará da própria natureza de Cristo.

6:10 Finalmente, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder.

Variante Textual: No grego temos as palavras «to loipon», que significam «finalmente», uma expressão comum, usada para fecho de alguma seção, ou para introduzir observações finais, de acordo com os mss Aleph(3), DGKLP e a maioria dos manuscritos cursivos. Porém, a forma «tou loipou» é a forma melhor confirmada nos manuscritos, aparecendo nos mss P(46), Aleph(l), AB e em alguns poucos outros. Essa forma significa «daqui por diante», ou então, conforme pensa Westcott, «no futuro». Portanto, essa palavra não assinala formalmente a parte final da epistola, mas antes, aponta para a vida cristã futura dos crentes, mostrando-lhes como se devem conduzir. A outra única ocorrência dessa expressão aparece em Gl 6:17. É como se Paulo tivesse escrito: «De agora por diante a vossa conduta como crentes deve ser como estou prestes a descrever.

As palavras «...meus irmãos...» aparecem em alguns manuscritos antigos, como objeto da exortação de Paulo, conforme dizem os mss Aleph(3), KLP, as versões siríaca, boárica e a maioria dos manuscritos cursivos. Mas os mss P(46), Aleph, BD, e as versões aramaica e etíope omitem tais palavras. Já os mss AG e a Vulgata latina dizem o simples «irmãos», sem o qualificativo «meus». Contudo, a forma correta é a omissão, conforme mostram os manuscritos mais antigos e importantes desta epistola aos Efésios.

«...sede fortalecidos...» No grego é «endunamoo», que significa «fortalecer», «tornar-se forte». Temos aqui a convocação dos crentes a buscarem o poder espiritual, tão plenamente ilustrado em Ef 1:19-23. É somente através do poder de Deus, que ressuscitou e exaltou a Cristo, assim conquistando todos os seus adversários (ver Cl 2:15), que podemos esperar obter uma vitória similar. Esse poder nos é conferido misticamente, através da influência e operação do Espírito de Deus. Por conseguinte, a busca pelo Senhor nos supre tal poder. E tal poder é outorgado à alma, transformando-a segundo a imagem de Cristo, de glória em glória (ver II Co 3:18), assegurando a vitória moral e a derrota dos poderes malignos que visam destruir a imagem de Cristo em nós. A convocação ao poder, pois, é essencialmente a chamada para a renovação de nossa inquirição pelo Espírito Santo e a sua plenitude. Trata-se da «renovação da mente» (ver Ef 4:23) e do «revestimento do novo homem (ver Ef 4:24), ou do «ficar cheio do Espírito» (ver Ef 5:18). É como se Paulo tivesse dito: «Tornai-vos poderosos, por esses meios ».

«...no Senhor...» Porque ele é aquele que tem todo o poder, nos céus e na terra (ver Mt 28:28 e Ef 1:19-23). Essa expressão aponta para aquele poder espiritual que nos é dado mediante a «comunhão mística» com Jesus, tal como a expressão «em Cristo» denota tal comunhão. (Ver o trecho de I Co 1:4 acerca dessa questão). A expressão «em Cristo» é empregada por cento e sessenta e quatro vezes nas epístolas de Paulo, servindo de «nota chave» de sua teologia. O cristianismo bíblico não repousa meramente sobre preceitos, ritos ou cerimônias. Mas é basicamente uma questão de comunhão com uma pessoa divina, em cuja imagem estamos sendo transformados. Portanto, é algo místico; e as vitórias e fortalecimen­tos devem vir-nos através desse caminho. Os preceitos são bons, as instruções morais são boas, o estudo da Palavra é bom; mas a vida espiritual deve ser muito mais do que tudo isso, porquanto é a comunhão real com Deus, em Cristo, por intermédio de seu Santo Espírito. Seu poder é ilimitado; mas devemos compartilhar desse poder para que seja de utilidade para nós.

«...na força do seu poder...» Em Jesus Cristo, que nos fortalece, podemos fazer todas as coisas. (Ver Fp 4:13). O poder de Cristo (ver II Co 12:9), tal como se vê em Ef 1:19, é o poder de Deus Pai; e isso é transmitido aos crentes que enfrentam o mesmo inimigo comum, como o é o inimigo de toda a vontade e verdade.

6:11 Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes permanecer firmes contra as ciladas do Diabo;

Tal como o «poder» é de Deus, assim também o é a «...armadura...», as armas de ataque e de defesa que ele nos confere para o combate. Essa armadura compõe-se da verdade, da retidão, do poder residente no evangelho, da fé, dos poderes inerentes à salvação, da operação íntima do Espírito Santo, que nos conduz na direção de nossa herança, e também da Palavra de Deus, ou seja, sua mensagem remidora e fortalecedora em Cristo, com as suas muitas provisões.

Essa armadura deve ser «revestida», mais ou menos como um soldado se prepara para a batalha, equipando-se com as peças de proteção e de defesa de seu equipamento. Aqueles itens mencionados, e que consistem da armadura em sua inteireza, evidentemente são apresentados na ordem em que os soldados antigos vestiam as várias peças de sua armadura. No grego, «armadura» é tradução do termo «panoplia», de onde vem o termo moderno «panóplia», termo coletivo que significa armadura completa. Portanto, Paulo recomenda-nos aqui um completo condicionamento de profundo preparo espiritual, em nada deficientes, dando a entender que um combate vitorioso não pode ocorrer se nos contentarmos com algo menos que isso.

Que há tantos crentes malsucedidos no mundo, ilustra o fato como não se equipam pessoalmente com todas as provisões divinas que lhes são propiciadas, por motivo de preguiça, de indiferença, ou por não quererem reconhecer a seriedade da batalha e a força astuta do inimigo. No grego clássico, o termo aqui usado fala sobre a armadura do «soldado pesadamente armado». Sim, um crente bem-sucedido deve ser pesadamente armado.

«...de Deus...» É uma refinação exagerada dessa metáfora pensar que o próprio Deus se reveste de uma armadura, ainda que o trecho de Is 59:17 talvez pinte o próprio Deus tendo a justiça como seu peitoral e a salvação como seu capacete. Mas essa profecia mui provavelmente é messiânica, apontando para Cristo Jesus, em sua humanidade e missão. Como homem, identificando-se como tal, ele precisou da mesma armadura. Utilizando-se da mesma, com a sua «própria mão», ele trouxe vitória.

Essas palavras, «de Deus», mui provavelmente são um «genitivo de origem», no original grego, ou seja, a armadura «procede de Deus». Naturalmente que essa armadura também pertence a ele; e a ele cabe dá-la, pois ele é o padrão supremo das virtudes mencionadas, como a retidão, a verdade e a fé. Mas que ele se revestiu dessas virtudes como uma armadura, é um exagero da metáfora. Porém, com ou sem essa interpretação particular, o ensinamento é o mesmo. Aquelas virtudes que nos conferem vitória sobre o pecado, bem como o sucesso no conflito cristão em favor de Deus e do bem, só nos podem ser dadas pelo próprio Deus, porquanto não são qualidades humanas.

Deve haver de nossa parte a apropriação do poder de Deus, conforme esse poder se encontra em Cristo. Sim, devemo-nos revestir de toda a armadura de Deus.

AS ARMADURAS ANTIGAS: A armadura inteira consistia de escudo, espada, lança, capacete, e armadura das pernas (que cobria as coxas até aos joelhos), segundo Políbio e outros escritores antigos. (Ver Thuc. iii, 14; Isocr. 352 D; Herod. i.60; Platão, Leis, vii., pág. 796 B; Políbio vi. 23,2). O soldado romano mui provavelmente está em vista aqui; mas as armaduras gregas e romanas não diferiam muito entre si. Paulo era homem intensamente viajado pelo império romano, tendo sido encarcerado e solto por muitas vezes, e estaria bem familiarizado com as armaduras de seu tempo. Os museus modernos contêm exemplares dessa armadura. O apóstolo acrescenta aqui o cinturão e a espada em sua lista; e apesar desses dois objetos realmente não fazerem parte da armadura, eram necessários para o soldado antigo, muito apropriados para o propósito de ilustrar o equipamento espiritual necessário para derrotar o mal. Abaixo oferecemos uma descrição detalhada das armaduras antigas;

I. Armas de Defesa:

1. «Perikephalaia», o «capacete», que protegia a cabeça. Era feito de várias formas e de vários metais, e com frequência era decorado com grande variedade de figuras. Alguns capacetes possuíam uma crista, ou como ornamento ou com a finalidade de aterrorizar, com figuras de leões, corvos, grifos, etc. Este último era um animal lendário, com corpo e pernas traseiras de leão, e cabeça e asas de águia. Paulo faz o capacete representar a «salvação». (Ver o décimo sétimo versículo deste capítulo).

2. «Zoma», o «cinturão», posto em torno da cintura, útil para apertar a armadura em volta do corpo, mas também para sustentar as adagas, as espadas curtas ou quaisquer outras armas que ali pudessem ser penduradas. Paulo faz do cinturão símbolo da «verdade» (ver o décimo quarto versículo).

3. «Thoraks», o «peitoral», que consistia de duas partes, chamadas «asas». Uma delas cobria a região inteira do peito, a parte frontal do tórax, protegendo os órgãos principais da vida, ali contidos. E a outra parte cobria uma parte das costas. Paulo faz isso representar a «justiça» ou «retidão». (Ver o décimo quarto versículo).

4. «Knemides», as «grevas», que serviam para proteger as canelas, isto é, do joelho para baixo, e com frequência com uma extensão de couro que também protegia o pé.

5. «Cheirides», uma espécie de «luvas» que serviam para defender as mãos, bem como o antebraço, até ao cotovelo.

6. Vários tipos de escudo, que Paulo usa como símbolo da «fé» (ver o décimo sexto versículo). Era o «aspis» ou o «chiled». Havia várias formas, feitas de diferentes metais. O escudo de Aquiles, que teria sido feito por Vulcano, seria circular, composto de cinco chapas de metal, sendo duas de bronze, duas de estanho e uma de ouro. Ver Ilíada, Upsilon, v. 270:

Cinco chapas de vários metais, vários moldes,

Compunham o escudo; de bronze cada um se dobrava para fora,

De estanho, cada um para dentro; e o do meio, de ouro.

«Gerron», ou «guerra», um pequeno escudo quadrado, que a princípio foi usado pelos persas.

«Laiseion», o escudo de forma oblonga, coberto com couros ásperos, ainda com os pêlos.

«Pelte», o «escudo leve», na forma de uma lua crescente, com um pequeno ornamento similar às pétalas recurvas de uma flor de luce, no centro de uma linha diagonal reta, que passava perto de uma das beiradas. Esse era o escudo amazônico.

«Thureos», o «scutum» ou «escudo oblongo», feito de madeira e recoberto de couro, mas já sem os pêlos. Tinha o formato do «laiseion» (descrito acima), embora fosse muito maior. Seu nome se deriva da palavra «thura», que significa «porta», visto que se assemelhava a portas de tamanho comum, quanto à sua forma.

Nos dias de Paulo, o «aspis» e o «thureos» eram os escudos mais usados. O primeiro se destinava a soldados levemente armados, e o último para soldados pesadamente armados.

II. Armas de Ataque:

1. «Egchos», a «lança», usualmente munida de ponta de bronze ou de ferro, com uma longa haste de madeira dura, geralmente de «freixo», árvore pertencente ao grupo da oliveira, mas dotada de uma madeira dura e elástica.

2. «Doru», o «dardo», menor e mais leve que a «lança», que era atirado contra o inimigo ainda à distância.

3. «Ziphos», a «espada», que tinha várias formas e dimensões. As primeiras eram feitas de bronze, e mais tarde começaram a ser feitas de outros materiais. Todas as espadas referidas nos escritos de Homero são de bronze. Esse é o símbolo usado por Paulo para indicar a presença do Espírito Santo.

4. «Machaira», palavra que também significa «espada». Mas era mais curta um pouco, frequentemente usada pelos gladiadores. Contudo, esta e a palavra anterior com frequência eram usadas como sinônimas, sem diferenças apreciáveis.

5. «Aksine», a «acha de armas» ou «machado de guerra».

6. «Pelekus», a dupla «acha de armas», com uma folha afiada para cada lado.

7. «Korune», a «maça», feita de ferro, muito usada pelos persas e gregos.

8. «Tokson», o «arco», completo com a «pharetta» (a aljava) e as flechas, que no grego têm o nome de «bele» (ver o décimo sexto versículo).

9. «Sphendone», a «funda», muito usada pelos hebreus e muitos outros povos, com grande habilidade.

10. «Akontion», o «dardo», outro tipo de lança, mais leve que o «ecchos».

11. «Belos», «flecha».

Era costume, entre os antigos gregos e romanos, depois de se terem revestido de suas armaduras, comerem juntos e precederem o ataque com uma súplica feita aos deuses, pedindo o sucesso. E esse costume se reflete no décimo oitavo versículo deste capítulo, pois, além do revestimento da armadura, Paulo nos recomenda «...toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito, e para isto vigiando com toda perseverança e súplica...»

«...ficar firmes...» No grego é «istemi», que significa oferecer resistência, «permanecer firme», dando a entender que o crente deve resistir aos assédios da impiedade, deve batalhar com êxito, obtendo a vitória. Essa expressão indica a linguagem dos soldados: «Não recuar!», ao invés de fugir derrotado. (Ver Thuc, v.104).

«...ciladas do diabo...» No grego, «...ciladas...» é «methodeia», que quer dizer «astúcias», «planos», «esquemas», ou, em linguagem militar, «estratagemas». Quando tal palavra se aplica a Satanás, no N.T., porém, sempre indica seus maus desígnios. O comandante das forças malignas é o «...diabo...» o grande mestre do ludibrio e do engodo, que capitaneia as forças do mal contra, o bem. Sendo ele o comandante das forças malignas, é óbvio que toda a armadura espiritual é necessária para o crente, com toda a oração e súplica, para que essas forças sejam derrotadas. O fato que tantos crentes são derrotados na refrega, é prova que não se têm preocupado com a preparação para a batalha espiritual, adquirindo a armadura espiritual necessária; e nem oram com suficiente perseverança, para que o mestre supremo do mal seja vencido em suas vidas.

O diabo é o líder supremo do reino das trevas, bem como de seus poderes inúmeros e potentíssimos. Ele é a essência mesma do mal. Seus aliados malignos são mencionados no versículo seguinte. Sua depravação é consumada, e mostra-se extremamente inteligente em sua perversidade. Por toda a parte o N.T. dá a entender que ele tem «personalidade», sendo identificado como um ser real, não se utilizando de seu nome como mera figura simbólica para as formas mais concentradas da maldade. Seu nome, «diabo», significa «caluniador», «acusador». Suas atividades, relativas ao crente, consistem em atacá-lo, procurando destruir lhe a alma, através de acusações falsas e tentações. (Ver sob o nome «Beelzebube», em Mt 10:25). Segundo certo ponto de vista, a história da humanidade é apenas o processo de como Deus, o Bem supremo, conquista a lealdade dos homens e de outros seres inteligentes, arrebatando-os das garras de Satanás, e como seres morais finalmente aprendem, por experiência própria, que o caminho de Deus é melhor que o caminho de Satanás, escolhendo o bem por vontade própria. É assim que os homens vêm a compartilhar da natureza essencial de Deus e não apenas a preferi-lo. Por essa razão também é que os processos históricos envolvem tão longo tempo; é mister que os homens, e outros seres dotados de livre-arbítrio, aprendam realmente no que consiste o bem, preferindo-o e passando segundo o mesmo.

«Entre os principais esquemas malignos do diabo, na época de Paulo, destacava-se o 'esquema do erro', a teia bem tecida da ilusão gnóstica, na qual o apóstolo temia que as igrejas da Ásia se deixassem enleiar. O império de Satanás é governado com uma norma fixa, e sua guerra é levada a efeito com um sistema estratégico que procura tirar vantagem de cada oportunidade de ataque. As múltiplas combinações do erro, as várias artes da sedução e da tentação, as dez mil formas de engodo da injustiça, constituem as 'ciladas do diabo'». (Findlay, in loc).

Conforme o pensamento cristão do segundo século de nossa era, as «ciladas» do diabo eram especificamente consideradas como as aflições que os cristãos então sofriam, que os levavam às perseguições e ao martírio. «O diabo tem tentado muitas ciladas contra eles; mas, graças sejam dadas a Deus, seu poder não prevaleceu contra ninguém». (Martírio de Policarpo, 2:4-3:1). Eusébio, em sua História Eclesiástica (V.i), menciona como as igrejas de Lyons e de Viena atribuíram às ciladas de Satanás a fúria das perseguições, resolvidas a destruir a igreja. «Mas, a graça de Deus fez o conflito voltar-se contra ele, e foram livrados os fracos, os quais foram só erguidos como colunas, capazes de resistir à ira do Maligno mediante a paciência». No texto presente, entretanto, a alusão é de natureza mais geral, dando a entender as variegadas tentações ao pecado, à incredulidade, ao descuido e à conformação com este mundo incrédulo. (Comparar isso com Ef 5:1-18, um trecho que alista os muitos pecados que os crentes precisam evitar, porquanto estavam dispersados de modo geral por todo o mundo pagão daquela época).

A mesma palavra aqui traduzida por «ciladas» também aparece em Ef 4:14, mas em nenhuma outra porção paulina, e nem no restante do N.T. E em nenhuma outra passagem o apóstolo dos gentios usa o nome «diabo» como título de Satanás. E por essa razão que alguns estudiosos pensam descobrir motivos contrários à autoria paulina desta epístola.

6:12 pois não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniquidade nas regiões celestes.

A palavra «...luta...», ou seja, literalmente, disputa, mostra que nosso conflito contra o mal exige preparação, força e coragem. No grego original temos a palavra «pale», que ordinariamente indicava a «luta romana», embora também pudesse indicar um conflito qualquer. A forma verbal significa «lançar», «projetar». Tal vocábulo é usado exclusivamente aqui, em todo o N.T. No sentido comum de «combate», essa palavra é encontrada nos escritos de vários poetas, como Esquilo, Cho. 866, e Eurípedes, Heracl. 159. O apóstolo Paulo provavelmente a emprega no seu sentido geral, porquanto, de outro modo, ter-se-ia desviado momentaneamente de sua metáfora de uma guerra, passando a pintar o conflito cristão contra o mal como uma luta do corpo a corpo. Seja como for, é focalizada a intensidade do combate, e para o que o soldado cristão deve ter a preparação e a força necessárias. A luta contra o mal, assim sendo, deve ser vista como uma batalha séria, em nada fácil. Talvez a derrota de tantos crentes, em suas vidas morais, se deva ao fato que não levam muito a sério esse combate, mostrando-se por demais indisciplinados como soldados.

«...sangue e carne...» Esta tradução segue a ordem correta das palavras no grego, embora se diga usualmente, ao usar-se essa expressão, «carne e sangue». A ordem que aqui aparece também figura em Hb 2:14, embora usualmente Paulo prefira «carne e sangue». (Ver I Co 15:50 e Gl 1:16). Paulo quer dar a entender aqui, simplesmente, a «natureza humana», em contraste com os «seres espirituais», que não possuem a matéria crassa, e, portanto, não são de carne e sangue. Não há aqui qualquer pensamento da «carnalidade humana pecaminosa», ou das paixões humanas, conforme o termo «carne» algumas vezes tem. Também não se verifica qualquer contraste entre os «inimigos internos» e os «inimigos externos». Antes, o combate se dá entre humanos e sobre-humanos. Paulo não queria negar que a luta contra o mal é, por igual modo, a luta contra a nossa própria natureza pecaminosa, e nem que os «inimigos internos» não sejam também nossos inimigos (pois o sexto capítulo da epístola aos Romanos afirma ambas as coisas); mas neste ponto ele mostra que poderes malignos e externos tornam esse conflito tão intenso que facilmente o crente se sai perdedor na refrega, a menos que esteja equipado com o próprio poder de Deus.

A debilidade humana fica subentendida na expressão «sangue e carne», ao passo que o poder fica subentendido na menção que se segue sobre as entidades espirituais.

«...principados e potestades...» (Comparar com o trecho de Ef 1:21, onde as mesmas palavras gregas são usadas, mas onde se referem particularmente a poderes angelicais santos, ao passo que aqui estão em foco seres espirituais do mal, embora de ordem superior). Tanto os seres espirituais de índole boa como aqueles de má índole, habitam nos «lugares celestiais» (ver Ef 1:20 e 6:12), sem isso querer dizer que habitam exatamente nos mesmos lugares ou campos celestiais, pois existem muitas dessas dimensões, algumas ocupadas por seres benignos, e outras ocupadas por seres malignos, embora todos pertençam à categoria «espiritual». Supõe-se que o termo «...principados..» se refere às ordens angelicais superiores, que possuem autoridade sobre grandes regiões e sobre muitíssimos seres. Já o vocábulo «...potestades...» se referiria a governantes subordinados.

A astrologia da época apostólica usava tais termos em conexão com os governantes dos corpos celestes, que poderiam exercer influência sobre os seres humanos, pois teriam acesso a esta dimensão terrena. (Ver Ef 1:21; Cl 1:16; 2:10 e I Pe 3:22). Não sabemos dizer se Paulo quis aludir às crenças astrológicas de seu tempo ou não. Seja como for, tais potestades e principados são considerados pelo apóstolo como perfeitamente reais, pois as palavras por ele usadas não têm qualquer intenção de ter um sentido simbólico.

«...dominadores deste mundo...» Uma única palavra grega foi assim traduzida, a saber, «kosmokrator», que literalmente significa «governante mundial». Esse termo também é usado na passagem de Ef 1:21. E pode ter tal vocábulo diversas significações, a saber:

1. Havia os antigos deuses-salvadores, como Serápis, Isis, Mitras, Mercúrio, Zeus e outros, que eram chamados por esse nome.

2. Além disso, tal nome era aplicado aos «deuses-sóis», no culto solar. Se porventura esse é o sentido da palavra aqui usada, então teríamos um sentido parcialmente astrológico, indicando a realidade de poderes associados à astrologia, embora na sua posição de «deuses», dominadores de homens, como algo real.

3. Os imperadores e outros grandes líderes políticos do passado também eram assim chamados. (Ver as inscrições egípcias, APF, 2,03,449, n°2, acerca do imperador romano Caracala, 211-217 d.C).

4. Os maus espíritos em geral também eram assim denominados, como também o era o anjo da morte. (Ver Testamento de Salomão, 230, onde os maus espíritos assim se intitulam a si mesmos. Comparar isso com I Co 10:19,20, que é passagem que nos instrui sobre o fato que a idolatria está escudada em espíritos malignos).

Mui provavelmente Paulo usou esse termo para indicar poderes espirituais inferiores àqueles mencionados acima, como «principados e potestades». Nesse grupo poderíamos talvez incluir os demônios. (Ver Mc 5:2). Os povos antigos ordinariamente acreditavam que os «demônios» são espíritos humanos desencarnados; e esse foi o ponto de vista predominante, até ao século V d.C, quando a influência de Crisóstomo levou a cristandade a pensar em demônios somente como «anjos decaídos». Bons intérpretes, como Lange (o principal expositor luterano), pensam que os «demônios» pertencem tanto à ordem dos anjos como à ordem dos espíritos humanos.

Por conseguinte, há muitos poderes espirituais, de diferentes categorias e de diferentes potências. Alguns desses poderes são malignos, fazendo guerra contra o bem e a verdade, tanto nos lugares espirituais como neste mundo. Esses poderes são nossos adversários, porquanto têm fácil acesso até esta terra, motivo pelo qual são chamados de «dominadores deste mundo», visto que seu poder se estende ao «kosmos», a esfera da existência humana. E isso serve para ilustrar a seriedade da luta espiritual em que nos encontramos.

«...mundo tenebroso...» Estão em foco aqui a terra e a época presente, sob o controle de forças más e entenebrecidas. (Comparar isso com o trecho de Ef 5:8, que chama os próprios pagãos ou incrédulos de «trevas»). O pecado, os seres pecaminosos, de natureza humana ou angelical, bem como as esferas da existência onde o mal domina, tudo isso está incluso aqui.

Variante Textual:—As palavras «...deste mundo...» não compõem o texto mais perfeito, estando contidas nos mss Aleph(3), D(3), KLP e na maioria dos manuscritos posteriores. Essas palavras são omitidas pelos mss P(46), Aleph(l), ABD(l), G, na Vulgata latina, nas versões boárica esiriacapeshittae nos escritos de Harcl., pai da igreja. Portanto, o texto verdadeiro diz «...contra os principados e potestades, contra os dominadores deste...» E posto que isso parecia indefinido, foi ornado e particularizado com a adição da palavra «mundo» ou «era», e, segundo dizem algumas traduções, «desta era presente». É bem possível que esse seja o significado do original, embora o grego não o expresse completamente com o reino de Deus, que é o «reino da luz» (ver Ef 5:8), sem haver qualquer referência particular ao tempo, ou era de seu domínio. Mas a forma literal do grego, «destas trevas», visto estar associada à presente existência terrena, talvez tenha pelo menos subentendido o terreno de sua operação nefanda.

«...forças espirituais...» No grego temos meramente a palavra «penumatikos», acompanhada de «mal», o que dá a entender «seres espirituais malignos», ou seja, as «forças do mal», sobretudo nesta metáfora, que retrata um exército opositor, composto de seres malignos. O que fica entendido é que esses seres são numerosos, embora isso não seja especificamente declarado. Literalmente traduzida, a expressão grega diria «...coisas espirituais (e com base no contexto) da iniquidade...», embora várias traduções prefiram dizer «hostes espirituais da maldade». O próprio Satanás é chamado de «maligno» (ver Lc 3:19; 7:21 e I Jo 2:13), e as suas forças e os seus aliados recebem idêntico título.

«...nas regiões celestes...» Expressão usada somente nesta epístola aos Efésios, por cinco vezes. Essas «regiões celestes» são o lar de Deus, de Cristo, dos anjos bons, dos homens remidos e até mesmo dos espíritos malignos; e não fica subentendido se há uma ou mais regiões ocupadas por todos esses diversos seres residentes. Antes, há muitos reinos, alguns ocupados por seres bons, e outros ocupados por seres malignos. Trata-se de crença bem antiga, como também é o único significado que essa expressão pode ter nesta epístola. Interpretar isso como o «ar» ou o «firmamento» é um absurdo, considerando-se a crença antiga; além do que isso seria contra o uso da expressão encontrada nesta própria epístola. Pois certamente Deus nunca é apresentado como quem habita no «ar» ou no «firmamento» que circunda a terra, e nem esse é o lar das almas remidas. (Ver o trecho de Ef 1:20, onde Cristo aparece entronizado nos «lugares celestiais», e onde o contexto mostra-nos que isso se aplica também aos crentes, pois que os crentes igualmente habitam ali é especificamente afirmado em Ef 2:6). Por igual modo, não podem estar em foco os lugares onde a igreja cristã exerce a sua influência, como se esses lugares houvessem sido «invadidos» pelas forças do mal. Na verdade, a multiplicidade de «céus» é um conceito comum da doutrina judaica, o que se reflete tanto nesta epístola como em passagens como II Co 12:2,3 e Jo 14:2, nos quais trechos o conceito é mais amplamente ventilado.

6:13 Portanto tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, permanecer firmes.

O termo «...Portanto...» nos chama a atenção para o fato que o nosso adversário não é humano, e, sim, sobre-humano, podendo ser combatido somente por uma outra força sobre-humana, a saber, a força do Espírito de Deus no homem.

«...tomai...», ou seja, «estendei a mão» para a armadura posta à vossa disposição, e revesti-vos dela. Que as realidades espirituais pintadas por esta metáfora sejam postas em prática em vossas vidas, porquanto isso será vossa proteção e vitória. A ordem de Paulo é que nos apropriemos do poder espiritual a nós oferecido. Os antigos soldados, quando não eram apropriadamente disciplinados e se encontravam em condições físicas deficientes, mostravam-se menos dispostos e eram menos capazes de suportar as fadigas de seu duro serviço militar, queixando-se do peso da armadura; e alguns deles obtinham permissão para pôr de lado parte da armadura, ou mesmo toda. E muitos eram assim mortos ou feridos, por não contarem com a proteção adequada.

A Epístola a Policarpo, de autoria de Inácio (vi), contém um paralelo ao nosso texto que, mui provavelmente, foi sugerido por ele: «Agradai ao capitão sob quem servis e de quem também recebereis vosso salário. Que ne­nhum de vós se torne desertor; que vosso batismo seja como vosso escudo; que vossa fé seja o vosso capacete; que vosso amor seja a vossa lança; que vossa paciência seja a vossa armadura inteira. Que vossas boas obras sejam o vosso pecúlio 'ver as notas expositivas abaixo, sobre essa expressão', para que recebais o que foi lançado com razão em vosso crédito». O «pecúlio» aqui referido diz respeito a certa porção do salário de cada soldado que era retida até que ele fosse desligado do exército. E esse «dinheiro em prêmio» era voluntariamente depositado, posto aos cuidados de um oficial especial. Os desertores, ou aqueles que eram desligados sem honra das fileiras armadas, perdiam esse acúmulo. Ora, isso é uma excelente metáfora acerca dos «galardões» dos crentes, no que diz respeito ao seu serviço cristão. (Ver os trechos de II Co 5:10 e I Co 3:8,14, acerca dos «galardões»).

«...toda a armadura de Deus...» Reiteração da mesma frase encontrada no décimo primeiro versículo, onde ela é comentada. Nenhuma porção da armadura pode ser omitida, pois o adversário de nossas almas sabe como tomar partido de qualquer debilidade; sendo ele profundamente maligno, aproveitar-se-á disso. Os recursos humanos, as resoluções morais, os sistemas religiosos e filosóficos, não nos servirão de ajuda em nada, porquanto somente um toque real da mão de Deus nos pode garantir a vitória nesse combate mortal. Devemos dar atenção ao fato que em tudo isso, alguma forma de preparação espiritual autêntica—como a comunhão completa com o Espírito de Deus—é ordenada aos crentes, nos usos metafóricos que aparecem em seguida. Portanto, não basta o conselho que geralmente se dá aos novos convertidos: «Leia a sua Bíblia e ore», embora isso constitua um bom exercício. Pois deve haver o contato pessoal do crente com o Senhor, a comunhão mística com ele. E o revestimento da completa armadura de Deus se faz através da busca, através dessa comunhão.

«...possais resistir...» No grego temos o verbo «anthistemi», que quer dizer «firmar-se contra», «resistir», e, na linguagem militar, «Não retroceder», não ceder ante os ataques do inimigo, não lhe outorgando qualquer vantagem, qualquer vitória. O mesmo verbo foi empregado para indicar a ocasião em que Paulo se «opôs» a Pedro face a face, devido à controvérsia legalista, segundo encontramos no trecho de Gl 2:11. (Ver igualmente o décimo primeiro versículo do presente capítulo, onde o verbo grego «istemi» é utilizado da mesma maneira, sem o prefixo preposicional).

«...no dia mau...» A expressão é um tanto ou quanto vaga, pelo que também tem sido alvo de muitas interpretações, conforme a lista discriminada abaixo:

1. Alguns pensam que se trata do dia da morte física; mas isso está inteiramente em desacordo com o contexto, porquanto a batalha do crente já ruge, não esperando primeiro que ele morra.

2. A vida presente é uma opinião parcialmente correta, porquanto a batalha em que estamos envolvidos é assim retratada, não se tratando de alguma cena ainda futura. Os dias são maus, conforme temos visto em Ef 5:16.

3. Outros opinam que se trata de qualquer dia de tentações particularmente violentas e insistentes, como parte da expansão total das experiências do crente, embora esteja aqui em foco algum período de crise, razão pela qual teria sido usado o artigo definido, em «no dia mau». Assim também pensava Barry (in loc), segundo o seu comentário: «Qualquer dia sobre o qual se possa dizer: 'Esta é a vossa hora, e do poder das trevas'».

4. Ainda outros eruditos veem aqui uma alusão escatológica, em que estaria em foco o «dia» imediatamente anterior à «parousia» (ou segundo advento de Cristo), para quando se espera tremendo irrompimento do poder satânico. Naturalmente que é doutrina neotestamentária que tal «dia» se aproxima. (Ver II Ts 2:8-10; Ap 16:12-16 e 20:7,8). Esse poder maligno se oporá a toda a bondade que houver sobre a face da terra, como que para impedir que o Filho do homem, o Senhor Jesus, se aposse de seu trono terreno, reconhecendo que o período de domínio da malignidade é curto.

5. Ainda outros veem aqui uma referência astrológica, quando as estrelas que influenciam a vida de alguém se encontram em posição errada, o que produz tribulação. Mas o crente, em contraste com aqueles que não têm esperança, não pode resignar-se a uma sorte assim, ditada pelo acaso, como o fazem os incrédulos, que são vítimas do mito astrológico. Antes, ao crente compete resistir firme e combater, com o poder do Espírito de Cristo. Contudo, se tal alusão astrológica tiver de ser compreendida aqui, o próprio texto sagrado não nos informa se Paulo tomava isso a sério ou não, mas tão-somente que ele não queria que os crentes fossem derrotados. Das várias interpretações, a que ocupa aqui o terceiro lugar é a melhor, talvez de mescla com a de número quatro —a ideia escatológica— posto que os cristãos primitivos esperavam que houvesse uma crise nos «últimos dias». E isso eles pensavam que ocorreria ainda durante sua vida terrena, não imaginando que tão grande período de tempo se passasse, pois desde então já se foram quase dois mil anos.

6. Ainda outros intérpretes sugerem que esteja aqui em foco o «dia do juízo». Mas isso é contrário ao texto, visto que a crise terá de ser enfrentada pelo crente «nesta vida terrena», e não depois dela.

«...depois de terdes vencido...» Uma tradução ainda mais literal diria «...tendo feito tudo...», isto é, tendo vestido a armadura inteira, tendo «resistido», tendo cumprido cada dever, tendo combatido o inimigo, não deixando de cumprir cada dever assinalado, tendo derrotado cada pecado em particular—então o crente se «postará como vencedor». No dizer de Braune (in loc): «O apóstolo fala aqui de cumprirmos a vontade de Deus em todas as direções e relações, a atividade ética e a eficiência do crente, que consegue vencer todos os assaltos e conflitos ...sem ser desviado e debilitado».

Devemos notar que Paulo não usou o particípio presente para dar a ideia de «vencendo», e, sim, de «cumprindo». Aplicando isso à linguagem militar, isso quer dizer que o soldado cristão deve permanecer no campo, equipado da cabeça aos pés, utilizando suas armas, cumprindo cada dever; mas isso subentende que ele obterá finalmente a vitória, ainda que a declaração paulina não declare isso diretamente.

«...permanecer inabaláveis...» No grego temos a palavra «stenai», forma infinitiva do verbo que significa «permanecer», «ficar», e que é traduzido no décimo primeiro versículo por «ficar firme». Nesse citado versículo há alusão ao início da batalha e sua continuação; mas aqui está em pauta o seu fim realizado, de tal modo que, no término do conflito, ou em algum ponto ao longo do caminho, o crente seja visto como alguém que permanece constante, obtendo assim a vitória, sem escorregar, sem retroceder e sem cair por terra. No dizer de Salmond (in loc): «...isso denota o resultado final; a capacidade de resistir quando a luta tiver prosseguimento, porque o crente tem em vista conservar sua posição no conflito até o fim, nem deslocar-se e nem desviar-se, mas antes, 'permanecendo' vitorioso em seu posto».

6:14 Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos lombos com a verdade, e vestida a couraça da justiça,

As palavras «...Estai...firmes...» refletem novamente o verbo grego «istemi», que significa «permanecer», pois o apóstolo volta aqui à admoestação que faz no décimo primeiro versículo, embora agora o faça para introduzir à nossa atenção várias peças da armadura que nos ajuda a obter a vitória nessa batalha. Com isso se pode comparar a descrição feita por Paulo, que parece seguir a ordem em que o soldado pesadamente armado se vestia das várias peças de sua armadura, pois Homero invariavelmente mostra que essa era a ordem usada. Políbio descreve a armadura do lanceiro romano, pesadamente armado, «hastatus», como segue: «Apanóplia romana consiste primeiramente de um escudo de superfície convexa, de 0,75 cm de altura; na beirada, sua espessura é da largura de uma mão... Juntamente com o escudo há a espada; e esta o soldado leva em sua coxa direita, chamada 'espada espanhola'. Permite um golpe poderoso e profundo com ambos os fios, pois a lâmina é forte e firme. Além disso, o soldado leva dois dardos, um capacete de bronze e grevas... A maioria dos soldados também usa uma chapa de bronze, da largura de um palmo para cada lado, e que colocam sobre o peito—chamam-na de 'protetor do coração'; e aqueles que valem mais de dez mil dracmas, ao invés do protetor do coração usam uma cota de malhas». (História, Vi. 23). Portanto, Paulo omitiu os dardos e adicionou o cinturão e os calçados.

Precisamos resguardar-nos de uma interpretação excessivamente refinada, neste ponto, conforme diz Calvino (in loc.) com grande aptidão: «Nada pode ser mais inútil que os esforços extraordinários que alguns envidam, a fim de descobrir a razão pela qual a retidão é o 'peitoral', e não o 'cinto'. O desígnio de Paulo era abordar superficialmente os pontos mais importantes requeridos de um crente, adaptando-os à metáfora militar que já havia usado». (Quanto a todas as peças das armaduras e armas dos soldados antigos, ver as descrições dadas nas notas expositivas sobre o décimo primeiro versículo deste capítulo).

«...cingindo-vos com a verdade...» Esse simbolismo se alicerça no trecho de Is 11:5, onde a verdade também é pintada como um cinturão que deve ser colocado. Consideremos ainda, a respeito disso, os pontos seguintes:

1. Talvez a alusão aqui feita seja à total verdade de Deus.

2. Devemos entender aqui a verdade cristã, isto é, segundo ela se encontra na pessoa de Cristo, ou seja, tudo quanto está envolvido desde a conversão, incluindo a conduta do crente, de acordo com padrões verdadeiramente bíblicos.

3. Alguns veem aqui a verdade como alusão particular à «fidelidade», à «lealdade» a Cristo, conforme se vê no trecho de Is 11:5.

4. A harmonia com a «revelação» divina e a lealdade à mesma, em contraste com as heresias dos gnósticos, ou com outros desvios doutrinários, ou mesmo com uma conduta incorreta, também está aqui em foco. Isso pode ser comparado com o que se lê em Ef 4:21, acerca da «verdade em Jesus».

5. Há também aqueles que veem uma significação especial no cinto, associado à verdade, porque era essa a peça que ligava as diversas peças entre si; assim sendo, a verdade «...confere unidade às diferentes virtudes, bem como confere determinação e coerência ao caráter. Todas as virtudes devem ser exercidas dentro da esfera da verdade». (Vincent, in loc).

A referência de Paulo mui provavelmente é lata, incluindo várias das ideias expostas nos pontos acima, e não apenas um ou outro aspecto.

A colocação da armadura é, na realidade, o revestimento do Senhor Jesus Cristo por parte do crente; e isso é expresso mediante uma metáfora poética. Todas as virtudes aqui referidas pertencem supremamente ao Senhor, e são proporcionadas pelo seu Santo Espírito (ver Gl 5:22,23). Portanto, revestir-se da armadura de Cristo equivale a assumir a natureza moral de Cristo; e o revestimento de sua natureza moral envolve o sermos transformados metafisicamente em sua natureza (ver Rm 8:29), para que participemos de sua imagem, de sua plenitude, e também da plenitude do próprio Deus Pai (ver Ef 1:23 e 3:19). Nisso é que consiste a vida cristã, verdadeiramente, o que é retratado mediante uma metáfora baseada na vida militar. E isso porque é a participação na natureza de Cristo que nos outorga verdadeira defesa contra todas as forças do mal e vitória sobre as mesmas, as quais pretendem impedir o progresso da alma de volta a Deus. (Ver o trecho de Rm 13:12 acerca da colocação da «armadura da luz», bem como II Co 6:7, acerca das «armas da justiça». Ver ainda Rm 13:14 e Gl 3:27 quanto ao «revestir-se de Cristo», e, finalmente, Ef 4:24, acerca do «revestir-se do novo homem»).

Todas as diversas declarações de Paulo, comentadas nas notas acima referidas, têm por alvo as mesmas verdades morais, embora sejam expostas de diferentes modos. A figura simbólica do «revestimento» alude ao ato de vestir as roupas, o que é uma metáfora diferente, embora indique a mesma coisa que a colocação da armadura, exceto que o conceito da armadura chama a nossa atenção, especificamente, para o combate do crente contra o mal, que é esperado da parte dele, enquanto se acha no processo de transformação segundo a imagem de Cristo.

«...e vestindo-vos da couraça da justiça...» (Ver o trecho de Is 59:1, que também se refere ao simbolismo do «peitoral» de uma armadura). Essa referência é messiânica, com toda a probabilidade, revelando-nos a preparação moral do Messias, o qual, mediante tal preparo, derrotou seus inimigos e completou sua missão e vitória. No trecho de I Ts 5:8, o «peitoral» aparece composto da «fé» e do «amor», e a «fé» é também o escudo do crente.

Existiam vários tipos de peitoral, feitos de diferentes materiais, nas armaduras antigas. Os guerreiros levemente armados usavam um peitoral feito de linho; algumas nações bárbaras equipavam seus soldados com peitorais feitos de chifre ou osso, cortados em pedaços pequenos e pendurados esses pedaços como escamas, amarrados sobre um capote de couro ou de linho. Mais tarde foram introduzidas tiras flexíveis de aço, dobradas umas sobre as outras. Os lanceiros romanos usavam cotas de malha, ou armaduras flexíveis feitas de tiras de metal ligadas entre si. Virgílio menciona peitorais em que os anéis de ligação eram feitos de ouro. (Eneida, iii. 467). Ainda outros peitorais eram de material inteiramente rígido, ficando de pé quando postos no chão. Esse tipo de peitoral se compunha de duas partes, uma que cobria o peito e outra que cobria as costas; e essas duas metades eram ligadas entre si por tiras de couro ou tiras de metal, por cima dos ombros, amarradas na parte da frente, havendo também articulações nos lados. Esses peitorais eram fabricados de couro, de bronze, de ferro ou de outros metais. Suetônio conta-nos como Galba (imperador romano em 68,69 d.C.) foi morto pelos soldados de Oto, por haver-se protegido apenas com um peitoral de linho, ao invés de usar um peitoral de material mais resistente.

O peitoral protegia os órgãos vitais do tórax e da parte superior do abdome. O que para o soldado era uma proteção extremamente importante, assim é a «justiça» ou «retidão» para o crente. (Ver Rm 3:21). É a própria retidão de Deus que está aqui em foco; porque ninguém pode chegar à sua presença se não possuir exatamente essa modalidade de retidão. Essa justiça tanto tem um aspecto «forense», através de um decreto divino, baixado com base no sangue expiatório de Cristo, como tem um aspecto «real», mediante a santificação, o que forma em nós a natureza moral de Cristo. Assim, pois, a perfeição da natureza moral de Deus é o próprio alvo da vida cristã (ver Mt 5:48), e o processo que nos faz avançar nessa direção é o da santificação, que nos serve de proteção contra todos os males que fazem guerra contra a nossa alma. No dizer de Faucett (in loc): «Está em pauta a própria retidão de Cristo, operada em nosso interior pelo seu Espírito». Sim, as qualidades morais da retidão estão naturalmente incluídas, porquanto essas qualidades perfazem a justiça que nos vem por intermédio da justificação, quando consideradas em seu conjunto total. E ambas essas ideias fazem parte inerente da expressão aqui usada pelo apóstolo Paulo.

6:15 e calçados os pés com a preparação do evangelho da paz,

O calçado do crente mui provavelmente é sugerido pela passagem de Is 52:7, que diz: «Quão formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas, que faz ouvir a paz, que anuncia cousas boas, que faz ouvir a salvação...» O trecho de Rm 10:15 cita essa passagem do A.T., e ali o leitor pode encontrar notas mais detalhadas a respeito. É possível que o calçado romano chamado «caligae» seja aludido nesta passagem, indicando as sandálias romanas com solas dotadas de inúmeros cravos, formando uma camada espessa. Os pés são nosso órgão de locomoção e viagem, aquele órgão que leva o mensageiro aos lugares onde ele deve anunciar a mensagem do estabelecimento da paz com Deus, o Pai celeste, bem como do estabelecimento da concórdia com os homens. (Ver em Ef 2:14 como Cristo é a «nossa paz», através da mensagem cristã). Cristo reconciliou judeus e gentios entre si, e ambos com o Senhor Deus (ver Ef 2:15,16), tendo-nos conferido acesso perfeito a Deus Pai (ver Ef 2:17,18), tornando a comunidade dos crentes o próprio templo de Deus, onde ele habita mediante o seu Santo Espírito (ver Ef 2:21,22). Sim, temos «paz com Deus» por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, no evangelho, onde é narrada sua história de amor remidor (ver Rm 5:1).

Ora, tendo obtido a paz com Deus, com seus semelhantes e consigo mesmo, o crente fica em repouso, em meio a este mundo perturbado, obtendo vitória sobre todos os inimigos, e até mesmo conduzindo-os aos pés do Senhor, onde também encontram paz. Dessa maneira as forças espirituais do mal são derrotadas, conforme se pode inferir do presente texto e do que é dito em Cl 2:15. É para ideias assim que a metáfora aqui aludida aponta.

«...preparação...» Para que entendamos melhor o sentido desta palavra, é mister desdobrar a explicação nos pontos dados abaixo:

1. Na versão da Septuaginta (tradução do original hebraico do A.T. para o grego, completada cerca de duzentos anos antes da era cristã), a palavra aqui empregada, «etoimasia», significa «estado de preparação» (ver Sl 9:41 e 10:17). Portanto, fica subentendida aqui a necessidade de nos prepararmos para a pregação do evangelho.

2. Outros preferem traduzir esse termo grego por «equipamento». O evangelho da paz é esse equipamento, posto em nossos pés, mediante o que «avançamos» batalha adentro, obtendo a vitória através de suas virtudes.

3. Esse vocábulo também pode significar «prontidão». Há certa preparação que produz a prontidão para enfrentar o inimigo, para obter a vitória espiritual e também conferi-la a outros, o que se encontra no recebimento correto do evangelho e no seu uso correto.

4. Além disso, essa palavra também pode significar o «estabelecimento de um alicerce firme», ou uma «base firme de apoio», espiritualmente falando, o que o evangelho igualmente nos confere. Assim, pois, o crente «fica firme», tendo os seus pés «protegidos», sendo assim capaz de cumprir a sua missão. E o evangelho, que é essa proteção, confere paz tanto a ele mesmo como àqueles que dão ouvidos ao evangelho. Uma vez que os pés estão protegidos, o avanço e a atividade cristã se tornam possíveis. O crente fica «preparado em sua mente», em estado de «prontidão», por causa de seu conhecimento, de sua aceitação e de sua propagação da boa mensagem cristã. A «paz» é o objetivo colimado, e a atividade na pregação do evangelho produz esse resultado.

Naturalmente, temos aqui um paradoxo: A finalidade legítima dessa batalha é trazer a «paz», não com os inimigos das realidades espirituais, mas com outros homens, que também estão em conflito com a impiedade existente nos «lugares celestiais». O evangelho, pois, torna-nos «prontos e dispostos» a nos atirarmos a essa batalha em prol da verdade e da retidão. Paulo aludia a tais coisas, portanto.

«...evangelho da paz...» Esse evangelho é «...da paz...» porquanto nos traz a harmonização com Deus, a harmonia da alma entre os homens. O evangelho elimina aquela «alienação» entre o homem e Deus, entre o homem e seus semelhantes e entre o homem e ele mesmo, causada pela queda no pecado, pois nessa queda o homem se afastou para bem longe de Deus. Mas eis que o evangelho nos outorga a «paz», como um de seus resultados, paz essa que impera no seio da família de Deus.

«A fim de estabelecer a paz de Deus no universo, que é o nosso desígnio final, precisamos combater contra o mal espiritual que perturba essa paz». (Beare, in loc).

«Assim calçados, com prontidão e disposição, aparecem os 'belos pés' daqueles que cruzam desertos e terrenos montanhosos, levando as boas novas da paz, as boas notícias do retorno de Israel a Sião (ver Is 52:7-9). Foi com essa força veloz que os pés de nosso apóstolo foram calçados, quando, desde Jerusalém e até o Ilírico' ele pregara o evangelho de Cristo, estando pronto, conforme ele mesmo afirma, 'a pregar as boas novas também a vós que estais em Roma' (ver Rm 1:15). Essa 'prontidão' pertence àqueles cujos pés são santos, que veio e pregou 'paz aos que estavam longe e aos que estavam perto' (ver Ef 2:17), quando, por exemplo, assentado como exausto viajor, à beira do poço de Sicar, ele encontrou refrigério ao revelar à mulher samaritana qual a fonte da água da vida. Essa prontidão também convém aos seus servos, que da parte dele têm ouvido a mensagem da salvação, sendo enviados a proclamá-la por toda a parte...O ataque, com frequência, é a melhor forma de defesa. Mantemos a paz propagando-a. Defendemo-nos de nossos oponentes levando-os a se converterem por meio do evangelho, o qual por toda a parte espalha as boas novas de reconciliação e fraternidade. Nossas missões ao estrangeiro são a nossa melhor apologia moderna; e os pacificadores de Deus são os seus mais poderosos guerreiros». (Findlay, in loc).

«Mantemos a paz com Deus enquanto mantivermos a luta contra Satanás». (Faucett, in loc).

6:16 tomando, sobretudo, o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do Maligno.

As palavras «...o escudo da fé...» precisam ser esclarecidas mediante os pontos seguintes:

1. Não está aqui em foco a «fé» como um corpo de doutrinas, como um credo (objetivo e formalizado).

2. Mas devemos pensar aqui em «fé» como um princípio evangélico, o que consiste na «entrega» de alma aos braços de Cristo, mediante o que somos justificados. Essa é a fé que governa a vida do crente, já que vivemos «de fé em fé». A fé original, por conseguinte, opera a cada dia em novos atos de fé; mas, na realidade, tudo é a continuação da mesma atitude, pois entregamos sucessivamente nossa alma aos cuidados de Cristo, crescendo sempre na dedicação a ele.

3. É retratado aqui muitíssimo mais que a «crença fácil» tão generalizada nas igrejas de nossos dias, porquanto não se destaca aqui a mera aceitação de algum conjunto de doutrinas, mas antes, rebrilha neste ponto uma transação entre Cristo e a alma confiante.

4. Essa fé geral é expressa, em algumas pessoas, através do «dom da fé», algo especial, por intermédio do que empreendemos grandes realizações em favor de Cristo.

«...embraçando sempre...» Melhor tradução ainda dessas palavras seria, «... além de todas essas coisas...», isto é, em adição àquilo que Paulo já havia ordenado.

«...escudo...» (Quanto aos vários tipos de escudos antigos, ver as notas expositivas sobre o décimo primeiro versículo deste capítulo). Segundo o original grego, temos aqui o grande escudo de forma oblonga, «thura», por assemelhar-se muito a uma porta. Esse escudo, que era tão grande que protegia o corpo inteiro do soldado, serve de metáfora excelente para a grande proteção que nos é conferida pela fé. Normalmente, esse tipo de escudo consistia de duas camadas de madeira, recobertas de lona e então de couro, embora houvesse variações em sua fabricação. Era o escudo usado pelos soldados pesadamente armados, o que está de conformidade com a metáfora geral aqui exposta pelo apóstolo dos gentios. Esse era igualmente o escudo para o qual as mães gregas apontavam e diziam a seus filhos, que partiam para a guerra: «Volta para casa e traz esse escudo contigo, ou volta nele». Isso porque tal escudo era suficientemente grande para nele ser transportado um cadáver, como se fosse uma maca. Ver o trecho de Sl 5:12: «...e, como escudo, o cercas da tua benevolência». (Ver Também o Anábavis, de Xenofonte, i.8,9, onde ele descreve que os soldados egípcios usavam escudos grandes que lhes chegavam aos pés).

«...apagar todos os dardos inflamados do maligno...» Essas palavras aludem aos dardos munidos de uma mecha em chamas, um método de combate que se prolonga desde os tempos antigos até aos tempos modernos. (Heródoto, viii. 52, diz, descrevendo o ataque dos persas contra uma fortaleza grega em Atenas: «...com flechas às quais haviam sido amarradas uma mecha em chamas...atiram contra as barricadas». Outro tanto diz Tucídides ii. 75: «Os plateanos levantaram um arcabouço de madeira, que puseram no alto de sua própria muralha, defronte do cômoro...Também dependuraram cortinas de peles e de couros na parte da frente, tudo com o propósito de proteger o arcabouço de madeira e os trabalhadores, como se fosse um escudo contra os dardos inflamados»).

Lívio descreve o uso de um imenso dardo, quando do cerco de Sagunto. Esse dardo era atirado mediante um conjunto de cordas retorcidas. Chamava-se «falarica». Sua haste era feita de madeira de abeto, e sua ponta era de ferro, com quase um metro de comprimento, de modo que pudesse perfurar a armadura de qualquer soldado e atravessar-lhe o corpo. No meio era munido de uma mecha inflamada, de tal modo que ainda que o escudo aparasse tão mortífero míssil, as chamas obrigassem o soldado a desfazer-se de seu escudo, deixando-o sem defesa e vulnerável a outro ataque. (Ver Lívio, xxi.8).

Tochas em chamas também eram usadas, algumas vezes com pixe, juntamente com os dardos inflamados. E assim, a ala inteira do exército que avançava parecia uma grande fogueira. Tais flechas em chamas, e outros mísseis similares, fazem-nos pensar sobre as tentações lançadas pelo diabo, com toda a sua fúria. Talvez tais tentações sejam aqui retratadas como algo que vem de longa distância, mas que atacam repentinamente, com todo o vigor. No dizer de Vincent (in loc): «Parece haver um indício sobre sua propagação: um pecado atrai a outro, que também ataca; a chama do dardo inflamado não tarda a espalhar-se. As tentações atuam sobre material susceptível. A autoconfiança é combustível fácil. A fé, porém, que elimina a dependência do crente de si mesmo, retira o combustível da frente do dardo. Antes, cria a sensibilidade para as influências santas, mediante as quais a força da tentação é neutralizada. A fé chama em nosso socorro a ajuda de Deus. (Ver I Co 10:13; Lc 22:32; Tg 1:2; I Pe 4:12 e II Pe 2:9)».

«O problema mais profundo criado pela pecaminosidade humana não consiste do 'que' se faz, e, sim, do 'por que' se faz. Por que o alcoólatra cede à tentação de beber? Por que o fariseu se mostrava orgulhoso? Por que todos nós somos vítimas dos 'dardos inflamados do maligno'? A resposta final não seria a falta de confiança em Deus? A moderna psicologia em profundidade pode sair aqui em auxílio da análise cristã. O alcoolismo se pode explicar com base na insegurança, no temor e na culpa. Esse vício oferece um meio de escape às exigências da entrevista entre Deus e o homem. E o escape, por sua vez, é um sintoma de ausência de fé. É preciso coragem para nos apresentarmos em juízo e enfrentarmos o nosso próprio 'eu'. Somente a confiança no Deus de amor—uma confiança como a que teve em seu pai o filho pródigo—pode vencer a covardia da incredulidade. E o alcoolismo é meramente uma ilustração relativamente clara de uma verdade maior. A inveja e o orgulho, por exemplo, se originam da mesma raiz de ausência de confiança. O Senhor Jesus dirigiu sua parábola sobre o fariseu e o publicano '...a alguns que confiavam em si mesmos...' (Lc 18:9). Não há necessidade de outra comprovação mais vivida. Basta que se substitua a confiança no Deus pela confiança própria, para que o orgulho apareça como resultado necessário. Nesse caso o 'eu', julgando-se moralmente aperfeiçoado, transformou-se em um 'deus'. E esse 'deus' precisa ser protegido de todo e qualquer ataque, acima de tudo, de todo ataque contra a perda da estima própria. Daí se origina o orgulho. Mas a fé em Deus indica a rendição do próprio 'eu'. Até mesmo da parte dos aristocratas morais, isso significa que ele deve reunir-se em coro à oração feita pelo publicano: 'Õ Deus, sê propício a mim, pecador». (Wedel, in loc).

Prossegue esse mesmo autor: «A mesma coisa que se pode dizer acerca do orgulho, pode ser dito com relação a qualquer outro catálogo de pecados. A igreja cristã não poderia realizar um maior serviço aos homens de nosso período perturbado e desesperador, do que estender-lhes novamente a graça da 'fé'. A fé, por si mesma, é um dom. Nenhum evangelho de obras pode produzir tal resultado. A fé requer a mediação de uma estrutura de fé, a comunhão da confiança, na obediência. E é somente dentro da comunhão da fé que se pode destronar com segurança os deuses falsos do homem autônomo. Quebrar ídolos, porém, é um negócio perigoso. A fé é o tesouro supremo, confiado aos cuidados do povo de Deus, a igreja».

Sim, aprendemos que a fé é capaz de conquistar (ver I Pe 5:9), de vencer o mundo (ver I Jo 5:4), e até mesmo de derrotar o «príncipe deste mundo», Satanás (ver I Jo 5:18).

«...do maligno...» Essas palavras podem ter um sentido impessoal, indicatórias do mal em geral; mais provavelmente, porém, devemos compreendê-las de maneira pessoal, como uma alusão a Satanás, o «maligno», o que é favorecido pelo contexto geral desta passagem. (Ver os trechos de Mt 5:3 e Jo 17:15). O nosso conflito é contra inimigos «pessoais», contra seres maldosos, e Satanás é aqui retratado como quem lança contra nós seus dardos inflamados.

«...apagar...» O escudo grande, usado pelos infantes gregos e romanos, apesar de fabricado de madeira, era recoberto de couro ou com uma lona grossa, que não queimava facilmente, o que significa que quaisquer dardos inflamados eram apagados. Portanto, de maneira simbólica, os assaltos inflamados de Satanás são frustrados, e o crente é protegido pela sua fé, que se alicerça em sua fidelidade ao Senhor.

Ouvi a difamação de muitos; havia terror por todos os lados. Mas confiei em ti, ó Jeová. Disse eu: Tu és o meu Deus!

6:17: Tomai também o capacete da salvação, e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus;

«...o capacete da salvação...» (Ver as notas expositivas sobre o décimo primeiro versículo deste capítulo, quanto a descrições sobre os capacetes antigos). Cumpre-nos observar aqui a modificação do verbo, «...Tomai...», ao passo que antes era «vestindo-vos». Todas as demais peças da armadura o soldado também tomava e vestia. A armadura era posta no chão, peça por peça, e o soldado ia colocando as diversas peças de seu equipamento. Mas, agora, já protegido inteiramente por sua cota de malhas, lhe é entregue tanto o capacete como a espada, por seu escudeiro. Esse simbolismo é apropriado para mostrar a salvação e a presença interior do Espírito Santo, conforme se entende através da teologia paulina. Pois um homem não toma e se veste dessas realidades espirituais; antes, recebe-as da parte de Deus, como se não pudesse fazê-los com as suas próprias forças. Isso é assim porque a salvação é um dom gratuito, recebido da parte do Senhor Deus; e o próprio Espírito Santo é dom de Cristo, «dado» àqueles que lho pedem. O Espírito Santo é conferido ao crente a fim de conferir salvação mais completa, no sentido de ser recebida mais uma bênção decorrente da expiação pelo sangue de Cristo. E a fim de cumprir isso, o Senhor também nos dá a «espada de Deus», que é a mensagem divina concernente a Cristo Jesus. E esta outorga ao soldado cristão todas as bênçãos espirituais, sendo usadas por ele para abençoar a outros, já que se trata de uma arma ofensiva. Não obstante, essa «...espada do Espírito...» também é arma de defesa, visto que contém aqueles preceitos que preservam a experiência da salvação, ajudando na batalha contra o mal.

A ideia de um capacete da salvação se alicerça em Is 59:17, que mui provavelmente é uma passagem messiânica, pois retrata o Messias protegido com um capacete assim, ao lançar-se em sua missão para derrotar os adversários de seu povo. O capacete protege a cabeça, e Cristo é o Cabeça. Ora, nos homens, a porção mais vulnerável e vital do corpo é exatamente a cabeça. Por conseguinte, a salvação é aquele capacete que protege o ser vital de ser desintegrado sob os efeitos condenadores do pecado. Devemos notar que, no trecho de I Ts 5:8, o capacete aparece como «a esperança da salvação», que não pinta a salvação como incerta, mas antes, mostra-nos que seu cumprimento principal ainda é futuro, e, portanto, algo pelo que embalamos esperança. E isso está de acordo com o ponto de vista sobre a salvação que transparece em Rm 8:24,25.

Do Que Consiste A Salvação ?

1. Ela começa pela justificação e pela fé (ver Rm 5:1).

2. Ela começa quando da conversão (ver Jo 3:3).

3. Ela começa quando do arrependimento (ver At 2:38).

4. Ela floresce através da santificação (ver I Ts 4:3).

5. Alcança fruto em nosso ser transformado, segundo a imagem e natureza de Cristo, mediante as operações do Espírito (ver Rm 8:29).

6. Ela nos conduz de um estágio de glória para outro, num processo eterno (ver II Co 3:18).

7. Envolve o fato de que nos tornamos co-herdeiros do Filho de Deus (ver Rm 8:17).

8. Envolve a participação na natureza divina e seus atributos (ver II Pe 1:4 e Ef 3:19.).

Há muitos crentes, hoje em dia, que ao dizerem «Estou salvo», ou ao indagarem «Você está salvo?», referem-se à conversão, o passo inicial da salvação neste mundo, o que é um ponto de vista legítimo mas muito limitado sobre a salvação. A salvação é aqui apresentada como um capacete porque Satanás ataca a alma, que está recebendo as bênçãos próprias da salvação, procurando destruí-la. Por essa razão é que Pedro recomendou-nos: «Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais que fazem guerra contra a alma» (I Pe 2:11). A conversão inicial nos confere uma proteção inicial, já que assim é dado início ao processo de transformação, e visto que a santidade nos protege do mal. Mas também precisamos aprimorar a santificação, que consiste do crescimento progressivo segundo a imagem moral de Cristo, que nos vai protegendo cada vez mais dos efeitos debilitadores do mal. Desse modo é que nossa proteção se vai completando, pois tornamo-nos fortes no poder de sua «força», já que estamos recebendo a sua imagem moral. Ora, estando nós nesse estado desenvolvido, o Maligno já não nos consegue influenciar tão facilmente.

«...capacete da salvação...», no original grego, envolve um genitivo de aposição, o que dá a entender «capacete que é a salvação». Essa bênção é que nos protege a alma de todo o malefício.

«...espada do Espirito... a palavra de Deus...» O Espírito Santo, em nós residente, utiliza-se da «...palavra...» para nossa vantagem. Não podemos ignorar aqui o fato espiritual da presença íntima do Espírito de Deus (ver Ef 2:21,22), pois é somente através do poder do Espírito Santo que a Palavra de Deus nos oferece qualquer utilidade. O Espírito Santo nos dá a Palavra e a torna eficaz em nós, dando vigor ao uso que fazemos dela. Também é o Espírito do Senhor que interpreta os preceitos da mensagem de Cristo para nós, tornando-os reais em nossas vidas. Em suma, é o Espírito Santo quem torna a Palavra de Deus uma força viva e vital em nossa vida diária. A Palavra é vitalizada pelo Espírito Santo. E isso é que eleva o cristianismo acima de todas as demais religiões, acima de qualquer filosofia, pois não consiste apenas de «conceitos», embora também envolva esse aspecto, mas é um caminho vivo e místico, o que significa que ali temos contato genuíno com o Senhor Deus. Portanto, suas obras, em prol da vida e do poder de Deus em nós, são dadas aos crentes, no decurso da vida cristã, o que assegura o sucesso dessa vida. Por essa razão é que a Palavra é chamada de «espada do Espírito».

A Palavra De Deus

1. Essa expressão, algumas vezes, aponta para o A.T., mas nunca para o Novo Testamento, porquanto a formação do cânon neotestamentário, só teve lugar após estar completo, como um documento escrito.

2. Usualmente, nas páginas do N.T., essa expressão indica «a mensagem oral do evangelho» (ver I Pe 1:25). Isso também se patenteia em Rm 10:17.

3. A palavra de Cristo, também pode indicar aquele corpo de doutrinas e de conceitos que circundam a pessoa de Cristo, em seus ensinamentos, em suas instruções, etc, que algumas vezes têm algo a ver com a moralidade e a conduta de nosso viver diário.

4. Examinar as seguintes expressões paralelas:

a. Palavra de Promessa, em Rm 9:9

b. Palavra de fé, em Rm 10:8

c. Palavra da verdade, em Ef 1:13.

d. Palavra de Cristo, em Cl 3:16.

e. Palavra de justiça, em Hb 5:13.

f. Palavra de profecia, em II Pe 1:19.

g. Palavra de vida, em I Jo 1:1.

5. A Palavra é vivificada pelo Espírito, tornando-se assim uma força impulsionadora para o bem (ver Hb 4:12). A maioria dos usos neotestamentários é de natureza evangelística, tendo alguma referência ao evangelho pregado pelos apóstolos, à nova fé religiosa, a qual, posteriormente, assumiu forma escrita no N.T. Algo como esse uso, provavelmente é o que está em pauta no presente texto. Esse vocábulo aponta para a espiritualidade, para sua criação e desenvolvimento.

É mister esclarecer aqui que os «dois gumes» da Espada do Espírito não são a «lei» e o «evangelho», porquanto tal interpretação é totalmente contrária à mensagem do N.T. Não obstante, a lei condena, e isso tem seu devido valor, para levar os homens a se entregarem a Cristo.

A ideia que a Palavra de Deus é uma espada foi tomada por empréstimo da interpretação rabínica. Por exemplo, o comentário dos rabinos (a midrash), diz com respeito ao trecho de Sl 45:3: «Cinge a espada no teu flanco, herói...» que: «Isso se refere a Moisés, que recebeu a Torah, que se assemelha a uma espada». (Rabino Judá, 150 D.C.). E acerca da «espada de dois gumes», que figura em Sl 149:6, o comentário rabínico diz: «Essa é a Torah, escrita e oral». E a versão da Septuaginta traduz o trecho de Is 11:4, que diz, «...ferirá a terra com a vara de sua boca...», como «...com a espada de sua boca...» (Isso pode ser confrontado ainda com o trecho de II Ts 2:8).

 

Bibliografia R. N. Champlin

 

 

FONTE: EBD AREIA BRANCA

0 Comments: