John R.W.Stott
Págs 90,91,92,93,94,95
Mt.7.13-20
O Relacionamento cristãos: Os Falsos Profetas
2. O perigo dos falsos mestres (vs. 15-20)
Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores. 16Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? 17Assim toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. 18Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. 19Toda árvore que não produz bom fruto é cortada, e lançada ao fogo. 20Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis.
a. Suposições
Ao dizer às pessoas acautelai-vos dos falsos profetas, Jesus obviamente supunha que estes existiam. Não há sentido em colocar-se no portão do jardim um aviso: "Cuidado com o cachorro!", se tudo o que você tem em casa é um casal de gatos e um piriquito! Não. Jesus advertiu os seus discípulos sobre os falsos profetas porque eles já existiam. Encontramo-los em muitas ocasiões no Velho Testamento, e parece que Jesus colocou os fariseus e saduceus no mesmo quadro. "Cegos condutores de cegos", ele os chamou. Ele também deu a entender que aumentariam de número, e que o período precedente ao fim se caracterizaria, não só pela propagação mundial do Evangelho, mas também pelo surgimento de falsos mestres, que desviariam a muitos. Lemos sobre eles em quase todas as cartas do Novo Testamento. São chamados de "pseudo-profetas", como aqui ("profetas" presumivelmente porque proclamavam inspiração divina), ou "pseudo-apóstolos" (porque diziam ter autoridade apostólica), ou "pseudo-mestres", ou até mesmo "pseudo-Cristos" (porque tinham pretensões messiânicas ou porque negavam que Jesus fosse o Cristo que veio em carne). Mas cada um deles era "pseu¬do", e pseudos é a palavra grega para mentira. A história da igreja cristã tem sido uma história longa e fatigante de controvérsias com falsos mestres. Seu valor, na providência soberana de Deus, é que apresentaram à Igreja um desafio para examinar e definir a verdade, mas causaram muitos prejuízos. Sinto que ainda há muitos deles nas igrejas de hoje.
Ao dizer-nos para nos acautelarmos com os falsos profetas, Jesus fez outra pressuposição, isto é, que há um padrão objetivo da verdade, do qual a falsidade dos falsos profetas se distingue. Caso contrário, a noção de profeta "falso" tornar-se-ia sem significado. Nos tempos bíblicos, um verdadeiro profeta era aquele que ensinava a verdade por inspiração divina, e o falso profeta era aquele que reivindicava a mesma inspiração divina mas propagava a mentira. Jeremias contrastou-os nestes termos: falsos profetas "falam visões do seu coração", enquanto que os ver¬dadeiros profetas "permanecem no conselho do Senhor", "ouvem a palavra de Deus", "proclamam-na ao povo" e "falam da boca do Senhor". Novamente, "o profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo?" Portanto, ao referir-se a determinados mestres chamando-os de "falsos profetas", está claro que Jesus não era sincretista, ensinando que opiniões contraditórias eram na realidade visões complementares da mesma verdade. Não. Ele defendeu que verdade e mentira são mutuamente excludentes, e que aqueles que propagam mentiras em nome de Deus são profetas falsos, dos quais os seus discípulos deveriam se acautelar.
b. Advertências
Depois de anotar as pressuposições de Jesus (que existem falsos profetas, bem como uma verdade da qual eles se desviam), temos de considerar mais precisamente sua advertência: Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores (v. 15). Desta metáfora aprendemos que os pseudo-profetas são perigosos e mentirosos.
Seu perigo é que, na realidade, são lobos. Na Palestina do primeiro século, o lobo era o inimigo natural das ovelhas, que ficavam totalmente sem defesa diante dele. Por isso, um bom pastor, como Jesus ensinaria mais tarde, tinha de estar sempre alerta e proteger suas ovelhas contra os lobos, enquanto que o empregado contratado (o qual, não sendo dono das ovelhas, não se importava com elas) geralmente as abandonava e fugia ao primeiro sinal da fera, deixando-as ser atacadas e dispersas. Exatamente da mesma forma o rebanho de Cristo está à mercê ou de bons pastores, ou de mercenários, ou de lobos. O bom pastor alimenta o rebanho com a verdade; o falso mestre, como um lobo, divide-o através do erro, enquanto o profissional tem¬porário nada faz para protegê-lo, abandonando-o aos falsos mestres. "Eu sei", disse Paulo aos anciãos de Éfeso, "que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando cousas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles. Portanto, vigiai. . ."
Que "cousas pervertidas" seriam estas que constituem uma perturbação e um perigo para a Igreja? Uma das principais características dos falsos profetas no Velho Testamento era o seu otimismo amoral, sua negação de que Deus era o Deus do Juízo, como também o Deus do amor e da misericórdia cons¬tantes. Eles eram culpados, disse Jeremias ao povo, pois "enchem de vãs esperanças . . . Dizem continuamente aos que desprezam a Palavra de Deus: "O Senhor disse: Paz tereis; e a qualquer que anda segundo a dureza do seu coração, dizem: Não virá mal sobre vós". Semelhantemente, Deus se queixa: "Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz". Tais palavras constituem um grande mau serviço ao povo de Deus, para não se dizer coisa pior. Dão-lhes um falso sentimento de segurança. Embalam-nos em seus pecados. Deixam de adverti-los sobre o juízo iminente de Deus ou sobre a maneira de como escapar dele.
Portanto, certamente não é por acaso que a advertência de Jesus sobre os falsos profetas no Sermão do Monte segue-se imediatamente após o seu ensinamento sobre as duas portas, os dois caminhos, as duas multidões e os dois destinos: os falsos profetas são peritos em tornar indistinta a questão da salvação. Alguns emporcalham ou distorcem de tal maneira o Evangelho que o tornam difícil de ser entendido pelos que tentam encontrar a porta estreita. Outros procuram demonstrar que o caminho estreito ê, na realidade, muito mais largo do que Jesus deu a entender, e que andar nele exige pouca ou nenhuma restrição na crença e no comportamento da pessoa. Outros ainda, talvez os mais perniciosos de todos, atrevem-se a contradizer Jesus, afirmando que o caminho largo não leva à destruição, mas que na verdade todos os caminhos levam a Deus, e até mesmo que os caminhos largo e estreito, embora levem a direções opostas, finalmente acabarão no mesmo destino, a vida. Não foi por menos que Jesus comparou esses mestres com lobos vorazes, não tanto porque fossem gananciosos, ávidos de prestígio ou de poder (embora geralmente o sejam), mas por serem "selvagens" (BLH), isto é, extremamente perigosos. São responsáveis pela condução de algumas pessoas à própria destruição que eles afirmam não existir.
Mais que perigosos, são também mentirosos. Os "cães" e os "porcos" do versículo 6, por causa de seus hábitos imundos, são fáceis de se reconhecer. Mas não os "lobos", pois penetram sorrateiramente no rebanho, disfarçados de ovelhas. Como resul¬tado, as ovelhas incautas os confundem com outras ovelhas e os recebem com boas vindas, de nada suspeitando. Seu verdadeiro caráter só é descoberto tarde demais, e quando o prejuízo já ocorreu.
Em outras palavras, um falso mestre não se anuncia nem faz propaganda de si mesmo como um fornecedor de mentiras; pelo contrário, reivindica ser um mestre da verdade. "Sabendo que os cristãos são um povo crédulo, disfarça seu propósito sombrio sob o manto da piedade cristã, esperando que seu inócuo disfarce evite o desmascaramento." Não só ele simula piedade, mas freqüentemente usa a linguagem da ortodoxia histórica, a fim de ganhar aceitação dos simplórios, enquanto, na verdade, suas pretensões são totalmente diferentes, algo destrutivo da própria verdade que pretende defender. Igualmente esconde-se sob o manto dos títulos altissonantes e dos graus acadêmicos impressionantes.
Portanto, "acautelai-vos!", Jesus adverte. Devemos ficar de guarda, orando por discernimento, usando nossas faculdades de crítica e jamais relaxando nossa vigilância. Não devemos ficar fascinados com o seu exterior, com o seu encanto pessoal, com a sua cultura, com seus títulos doutorais e eclesiásticos. Não devemos ser ingênuos a ponto de supor que, sendo um Dou¬tor em Filosofia ou em Teologia, um professor ou um bacharel, ele deve ser um verdadeiro e ortodoxo embaixador de Cristo. Devemos olhar por trás de sua aparência para a realidade. O que se encontra sob o pelo: uma ovelha ou um lobo?
c. Provas
Tendo notado as pressuposições feitas por Jesus e as advertências que deu, estamos agora prontos a examinar o teste ou testes que ele nos mandou aplicar. Ele mudou suas metáforas de ovelhas e lobos para árvores e seus frutos, e da roupagem das ovelhas que um lobo poderia usar para o fruto que uma árvore deve dar. Fazendo assim, ele passou do risco do não-reconhecimento para os meios do reconhecimento. Embora certamente possamos confundir muitas vezes um lobo com uma ovelha, ele nos diz que não podemos cometer o mesmo engano com uma árvore. Nenhuma árvore pode esconder a sua identidade por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde ela se trai, pelo seu fruto. Um lobo pode disfarçar-se; uma árvore, não. Ervas daninhas, como espinhos e abrolhos, simplesmente não podem produzir fruto comestível como uvas e figos. Não só o caráter do fruto fica deter¬minado pela árvore (uma figueira dá figos e uma videira, uvas), mas também a sua condição (toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz maus frutos, v. 17). Na verdade, não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons (v. 18). E o dia do juízo concluirá a diferenciação, quando as árvores não frutíferas serão cortadas e quei¬madas (v. 19). Portanto (pois esta é a conclusão que Jesus enfatiza duas vezes), pelos seus frutos os conhecereis (vs. 16, 20). Que frutos são estes?
A primeira espécie de "fruto" pelo qual os falsos profetas revelam a sua verdadeira identidade está no campo do caráter e da conduta. Na alegoria do próprio Jesus, a produtividade significa semelhança com Cristo, o que Paulo mais tarde designou como "o fruto do Espírito". Sendo assim, sempre que vemos em um mestre a mansidão e a humildade de Cristo, o seu amor, a sua paciência, a sua bondade, a sua delicadeza e auto-controle, temos motivos para considerá-lo verdadeiro, não falso. Por outro lado, sempre que estas qualidades estão ausentes, e "as obras da carne" estão mais aparentes do que "o fruto do Espírito", especialmente a inimizade, a impureza, a inveja e a auto-indulgência, devemos suspeitar que o profeta é um impostor, por mais pretensiosas que sejam as suas reivindicações e por mais plausíveis que sejam os seus ensinamentos.
Mas os "frutos" do profeta não são apenas o seu caráter e modo de vida. Na verdade, os intérpretes "que os confinam a esta vida estão, na minha opinião, enganados", escreveu Calvino. O segundo "fruto" é o próprio ensinamento da pessoa. Isto ficou fortemente sugerido pelo outro uso que Jesus fez da mesma metáfora da árvore frutífera: "Pelo fruto se conhece a árvore. Raça de víboras! como podeis falar cousas boas, sendo maus? porque a boca fala do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro bom cousas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira cousas más. Digo-vos que toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no dia do juízo; porque pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado." Portanto, se o coração de uma pessoa revela-se em suas palavras, como a árvore se conhece pelos seus frutos, temos a responsabilidade de experimentar um mestre pelos seus ensinamentos. O apóstolo João dá-nos um exemplo disto, pois as igrejas da Ásia às quais escreveu tinham sido invadidas pelos falsos mestres. Assim como Jesus, ele admoestou-as a não se deixarem enganar, mas que "provassem os espíritos" Cisto é, dos mestres que reivindicavam a inspiração) para ver se procediam de Deus. Incentivou-as a buscar retidão e amor em seus mestres e a rejeitar como espúrios os injustos e os que não tivessem amor. Mas a este teste moral ele acrescentou um doutrinário. Genera¬lizando, era se a mensagem dos mestres estava de acordo com a instrução apostólica original, e, particularmente, se confes¬sava Jesus como o Cristo que veio em carne, reconhecendo assim sua pessoa divino-humana.
Os reformadores do século dezesseis, que foram acusados pela Igreja de Roma de serem inovadores e falsos mestres, defen¬deram-se através deste teste doutrinário. Apelaram para as Escri¬turas e declararam que os seus ensinamentos não eram a intro¬dução de alguma coisa nova, mas a recuperação de uma coisa velha, a saber, o Evangelho original de Cristo e dos seus após¬tolos. Foram antes os católicos medievais que se afastaram da fé, caindo no erro. "Apeguem-se à Palavra de Deus pura", cla¬mava Lutero, para serem capazes de "reconhecer o juiz" que está certo. Calvino enfatizou a mesma coisa: "Todas as dou¬trinas têm de ser colocadas junto ao padrão da Palavra de Deus", pois "no julgamento dos falsos profetas, a regra da fé (isto é, das Escrituras) tem o primeiro lugar". Ele foi ainda um passo adiante, chamando a atenção para as motivações dos falsos mestres, além do conteúdo de seus ensinamentos: "Com os fru¬tos, o modo de ensinar está incluído . . ., pois Cristo provou ter sido enviado por Deus, ao dizer que não estava 'procurando a sua própria glória', mas a glória do Pai que o tinha enviado" (João 7:18).
Ao examinar as credenciais de um mestre, então, temos de observar tanto o seu caráter como a sua mensagem. O Rev. Ryle resumiu bem: "Doutrina sadia e vida santa são os sinais dos verdadeiros profetas." Penso que há um terceiro teste que devemos aplicar aos mestres, e refere-se à sua influência. Temos de nos perguntar que efeitos os seus ensinamentos estão produ¬zindo nos seus discípulos. As vezes, a falsidade do ensino falso não aparece imediatamente quando olhamos para o comportamento ou para a doutrina de um mestre; apenas mais tarde percebemos que seus resultados foram desastrosos. Foi isto que Paulo quis dizer ao escrever que o mal tem a tendência de "cor¬roer como o câncer". Seu processo canceroso progride con¬forme vai perturbando a fé das pessoas, promovendo a impiedade e provocando divisões dolorosas. O ensinamento bom, por outro lado, produz fé, amor e piedade.
Naturalmente, a aplicação deste teste dos "frutos" nem é simples nem direta, pois os frutos levam tempo para crescer e amadurecer. Temos de esperar pacientemente. Precisamos tam¬bém de uma oportunidade para examiná-los atentamente, pois nem sempre é possível reconhecer uma árvore e seus frutos à distância. Na verdade, até mesmo de perto podemos não per¬ceber imediatamente os sintomas de uma doença na árvore ou a presença de um verme no fruto. Para aplicar isso a um mestre, precisamos, não de uma estimativa superficial de sua posição na Igreja, mas de um escrutínio íntimo e crítico do seu caráter, da sua conduta, da sua mensagem, das suas motivações e da sua influência.
Entretanto, esta advertência de Jesus não nos incentiva a fi¬carmos desconfiados de todos ou a adotarmos como passatempo o esporte indecoroso de "caça à heresia". Antes, é um lembrete solene de que há falsos mestres na Igreja e que devemos ficar em guarda. O que importa é a verdade, pois Deus é a verdade e esta edifica a igreja de Deus, enquanto que o erro é demo¬níaco e destrutivo. Se damos importância à verdade de Deus e à Igreja de Deus, temos de levar a sério a advertência de Cristo.
Ele e seus apóstolos colocaram a responsabilidade da pureza doutrinária da Igreja parcialmente sobre os ombros dos líderes cristãos, mas também e especialmente sobre cada congregação. A igreja local tem mais poder do que geralmente percebe ou usa na decisão de qual dos mestres vai ouvir. O Acautelai-vos dos falsos profetas, proferido por Jesus Cristo, dirige-se a todos nós. Se a Igreja desse atenção à sua advertência e aplicasse os seus testes, não estaria nesse terrível estado de confusão moral e teológica em que se encontra atualmente.
Com este parágrafo Jesus conclui o seu esboço dos relaciona¬mentos cristãos. Ao olharmos para trás, reunindo os ensinamentos, vemos como são ricos e variados. Como irmão, o cristão odeia a hipocrisia, critica a si mesmo e procura dar apoio moral construtivo aos outros. Como evangelista, valoriza tanto a pérola do Evangelho que se recusa a expô-la à rejeição desdenhosa dos pecadores endurecidos. Como amante de todos os homens, está resolvido a comportar-se em relação a eles como gostaria de vê-los comportando-se para com ele mesmo. Como filho, olha humilde e confiantemente para o seu Pai celeste para receber as boas dádivas de que precisa. Como viajante no caminho difícil e estreito, desfruta da comunhão com os companheiros de peregrinação e mantém os olhos no alvo da vida. Como defensor da verdade revelada de Deus, dá atenção à advertência de Cristo de acautelar-se dos falsos mestres, que poderiam pervertê-lo e assim prejudicar o rebanho de Cristo.