quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Promessa de um Lar Feliz no Antigo Testamento
POR PR.ESDRAS COSTA BENTHO
Família, Projeto Divino
Em nossa obra A Família no Antigo Testamento: História e Sociologia, descrevemos a família bíblica como "o âmago da estrutura social". Na Tanach, exclusivamente em Berê’shîth (Gênesis), encontramos o princípio judaico-cristão da família no texto que diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante dele. Então, o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o Senhor Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apergar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam” (Gn 2.18,21-25).
Família, Centro de Comunhão
Deus é quem decidiu criar a família. Esta foi formada para ser um centro de comunhão e cooperação entre os cônjuges. Um núcleo por meio do qual as bênçãos divinas fluiriam e se espalhariam sobre a terra (Gn 1.28). Não era parte do projeto célico que o homem vivesse só, sem ninguém ao seu lado para compartilhar tudo o que era e tudo o que recebeu da parte de Deus, pois o homem sente-se pessoa não apenas pelo que é, mas também quando vê o seu reflexo no outro que lhe é semelhante. Portanto, a sentença divina ecoada nos umbrais eternos expressa o amor e o cuidado celeste para com a vida afetiva do homem. O próprio Deus não estava solitário na eternidade, mas partilhava de incomensurável comunhão com o Filho e o Santo Espírito. Deus é um ser pessoal e sociável às suas criaturas morais. No entanto, contrapondo a natureza divina à humana, concluímos que o intrínseco relacionamento entre a divindade e o ente humano dá-se em níveis transcendentais, metafísicos.
Por conseguinte, faltava ao homem alguém que lhe fosse semelhante, ossos dos seus ossos, carne de sua carne, alguém que se chamasse “varoa” porquanto do “varão” foi formada. Essa correspondência não foi encontrada nos seres irracionais criados, mas na criatura tomada de sua própria carne e essência. A mulher era ao homem o vis-à-vis de sua existência. Seu reflexo. Partida e chegada. O homem e a mulher se identificam mutuamente por compartilharem da mesmíssima imagem divina: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gn 1.27). Homem e mulher, portanto, fazem parte do mesmo projeto celífluo. Sentem-se tão necessários à existência do outro quanto dependem individualmente do ar que respiram. Esta interdependência é inerente à formação moral e espiritual do próprio ser. Faz parte do mistério, da teia de encontros e desencontros, de fluxo e refluxo que cercam a união entre homem e mulher. A união conjugal, portanto, antes de ser um contrato jurídico, era um ato de amor, companheirismo e cumplicidade em que as principais necessidades humanas eram plenamente satisfeitas. Homem e mulher se auto-realizavam um no outro.
A Constituição do Núcleo FamiliarA constituição do núcleo familiar a priori foi composta por um homem e uma mulher. Mais tarde, acrescentou-se ao casal os filhos gerados dessa união. A partir do nascimento dos primeiros filhos, a família tornou-se o primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido.
A primeira família, formada apenas por duas pessoas, tornou-se numerosa por meio dos filhos que, ao serem gerados, se inseriram no núcleo familiar assumindo diversos papéis dentro do sistema: filho, irmão, neto, primo, etc. A família não foi criada, portanto, como um sistema fechado, mas dinâmico, e, com o passar do tempo, o número de seus membros foi aumentando gradativamente, e destes formando novos núcleos familiares ligados por consangüinidade e afinidade.
Terminologia e Conceito de Família no Antigo Testamento
O hebraico do Antigo Testamento costuma usar três palavras para família: bayît, bêt, mishpāhâ.
Bayît. A primeira delas é bayît, que designa tanto uma “residência”, “templo”, “lar”, a “parte interior de uma casa”, “casa”, quanto também o conceito de “família” ou “os moradores de uma mesma casa”. O sentido de habitação é um dos mais freqüentes usos do termo (Êx 12.7; Lv 25.29; Dt 11.20).
Bêt. Outro vocábulo muito freqüente é bêt, cujo sentido literal é “casa” e ocorre juntamente com outros termos formando uma idéia completa tal qual bêt’ēl (Casa de Deus), bêt lehem (Belém ou “casa de pão”), e assim por diante. O termo bêt designa “pessoas de uma casa”, ou juntamente com ’āb designa “casa do pai”.
Mishpāhiâ. O terceiro vocábulo, mishpāhiâ, literalmente significa “família”, “parentes” ou “clã”. A ênfase está nos laços sangüíneos que existem entre as pessoas de um mesmo círculo. Segundo Harris, o termo “se emprega como subdivisão de um grupo maior, tal qual uma tribo ou nação (Nm 11.10)”.
Portanto, família para o hebreu designava tanto o vínculo consangüíneo existente entre um grupo de pessoas em uma mesma casa quanto o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco.
Das trezentas e sessenta e sete ocasiões em que o termo “família” aparece no Antigo Testamento, cerca de cento e cinqüenta e duas aparecem no livro de Números referindo-se aos descendentes das tribos, isto é, aqueles cujo laço sangüíneo o relaciona a determinada tribo, família ou clã. É o caso, por exemplo, de Números 1.2: “Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça” (ARA).
Temos nesse texto um exemplo do uso de “congregação” (‘ēdâ) para referir-se a “todo o povo de Israel”, “famílias” (mishpāhiâ), para designar o “clã”, como principal unidade social, de tamanho intermediário entre a tribo e a “casa” (bayît) de seus pais. Este último pode ser traduzido por “família”, e refere-se àquela unidade consangüínea menor que habita uma mesma casa.
Um outro aspecto que deve ser notado a respeito dos termos e da composição das antigas famílias bíblicas é que os costumes locais, vez por outra, incluíam os servos ou escravos como integrantes da família. Isto é facilmente observado no termo hebraico shiphâ, que é traduzido por “criada” ou “escrava”, mas uma escrava associada à mishpāhiâ, isto é, ao núcleo familiar. A escrava denominada shiphiâ, segundo Harris, era uma serva que podia ser dada de presente a uma filha quando esta se casasse (Gn 29.24,29). E de acordo com a lei de Nuzi, uma esposa estéril podia entregar sua serva ao marido a fim de ter vicariamente um filho, por meio da serva (Gn 16.2; 30.3,4). Um menino nascido de tal união seria o herdeiro, a menos que a própria esposa mais tarde tivesse um filho.
A junção dos vocábulos bayît, bêt, mishpāhiâ e shiphiâ demonstra que o conceito de família para o hebreu abrangia tanto os parentes próximos, longínquos, quanto os escravos. Desde que houvesse uma relação consangüínea ou de afinidades, já se constituía um membro da unidade familiar.
As famílias, portanto, eram extensas e, após os doze filhos de Jacó, reuniam-se em tribos que seguiam minuciosamente a tradição familiar. Os “pais patriarcais” detinham o poder e o governo soberano sobre o grupo familiar.
Nestes idos patriarcais, viviam em acampamentos comuns emigrando de um canto a outro à busca de pastagem para o rebanho ou de subsistência para a numerosa família: “Fez as suas jornadas do Neguebe até Betel, até ao lugar onde primeiro estivera a sua tenda, entre Betel e Ai. Ló, que ia com Abrão, também tinha rebanhos, gado e tendas” (Gn 13.3,5 – ARA).
Esta conjuntura social possibilitou o contato com várias populações também agricultoras e, vez por outra, a possibilidade de haver intercâmbio comercial e união matrimonial que, dado às características da tradição hebréia, eram geralmente rejeitadas (Gn 34).
Composição da Família hebraica
A extensa família hebréia, portanto, distinguia-se quanto à composição das suas unidades:
’Āb. O pai, do hebraico ’āb, tanto designa o “originador” de uma descendência quanto o “ancestro” ou “líder”. O termo dentro do contexto nômade, seminômade ou da vida sedentária hebréia também se refere a “alguém revestido de autoridade sobre”. O ’āb é o responsável direto pela família, cabendo-lhe todas as decisões sociais, culturais e jurídicas que dizem respeito ao bem-estar do núcleo familiar. Todos são igualmente dependentes dele e, por isso, denomina-se “casa de meu pai”, bêt ’āb , ou bayît ’āb, representando o núcleo familiar básico ou pessoas da mesma casa (Gn 24.38,40; 28.21; 41.51; 46.31). O ’āb, portanto, é o pai de família ou chefe da casa ou do grupo doméstico, quer este grupo seja numeroso quer não.
Mishpāhiâ. O clã ou mishpāhiâ, como é designado no Antigo Testamento, era uma unidade familiar mais ampla do que a anterior. Abrangia várias famílias em uma comunidade geográfica mais ampla. O clã era liderado pelos mais velhos ou “anciãos”, que conseqüentemente eram os cabeças das famílias. Os anciãos, do hebraico zāqēn, faziam parte de uma categoria social entre os hebreus, conhecidos pelos sábios conselhos, prudência, vivência e capacidade para julgar situações embaraçosas. Estes são chamados de “anciãos de Israel” (Êx 3.16,18; 12.21; 17.6), “anciãos dos filhos de Israel” (Êx 4.29;), “anciãos do povo” (Êx 19.7; Nm 11.24), “anciãos da congregação” (Lv 4.5), “anciãos da cidade” (Dt 19.12; 21.3). Esta composição social também era comum entre os moabitas e midianitas (Nm 22.7). Os anciãos auxiliavam na resolução de problemas ligados à virgindade (Dt 22.15), homicídios (Dt 19.12; 21.1), in passim. Números 11.25 menciona setenta anciãos que profetizaram quando sobre eles o Espírito do Senhor desceu. Segundo H. Schmidt, o clã parece incluir um grupo de mil homens com capacidade para guerrear (cf. Mq 5.1; 1 Sm 8.12; 23.23).
Matteh. A tribo, do hebraico matteh, era um conjunto de clãs. O termo original significa, ipsis verbis, “vara”, “bordão” ou “haste”, passando a significar “tribo” em razão de os líderes usarem bastões ou varas como símbolo de autoridade investida. Todas as famílias que compunham uma tribo eram uma comunidade religiosa, econômica e juridicamente ligada pela consangüinidade e afinidades familiares. As responsabilidades, entre outras, incluíam: a defesa militar, a solidariedade entre os seus membros, a educação das crianças conforme a tradição da tribo, o cuidado com a propriedade familiar e a manutenção das riquezas e bens comuns.
Em uma determinada tribo estava a unidade básica do núcleo familiar sob a responsabilidade do ’āb, que por sua vez se subordinava ao mishpāhiâ; a somatória destes compunha o matteh: “Dos filhos de Simeão, as suas gerações, pelas suas famílias, segundo a casa de seus pais...” (Nm 1.22 – ARA). Todos se consideravam filhos de um mesmo ancestral — como por exemplo, um dos doze filhos de Jacó —, do qual recebiam um nome epônimo (Nm 1). O representante de cada matteh era chamado de “cabeça da casa de seu pai” (Nm 1.4), “príncipe da tribo de seu pai” ou “cabeça dos milhares de Israel” (Nm 1.16).Correndo o risco de perturbar a clareza das informações acima expendidas, creio ser necessário recorrer a dois teóricos sociais para auxiliar-nos na compreensão desse formato social: Durkheim e Weber. O modelo social acima descrito adequa-se ao tipo de solidariedade social proposta por Durkheim: a solidariedade mecânica. Nesta, os indivíduos possuem sua identidade mediante a família, a religião, a tradição e os costumes da tribo. Todos reconhecem e vivem os mesmos valores seguindo a tradição ancestral, do qual a coletividade procede. Uma “família-tronco” perpetua-se em torno do chefe de família pela instituição de um “herdeiro associado”. Os indivíduos nesse modelo social vivem sob a coerção dos fatos sociais. Os fatos sociais, segundo Durkheim: "É toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma determinada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais." (As Regras do Método Sociológico, p. 92) .
Para M. Weber, contudo, não é necessário que a ordem social tenha de se opor e se distinguir dos indivíduos, como uma realidade exterior a eles; ao contrário, estas normas se manifestam em cada indivíduo sob forma de motivação. A ação tradicional, uma das quatro formas de ação social proposta por Weber, por exemplo, é motivada pelo costume, tradição, hábito, crenças e valores —, pelos quais o indivíduo age movido pela obediência a eles, em razão de estarem fortemente enraizados na base do ethos tanto em sua vida quanto na do grupo.
A distinção entre um e outro está basicamente no método empregado. Émile Durkheim baseia-se nos métodos positivistas fundamentados em Augusto Comte e Herbert Spencer, enquanto Max Weber fundamenta-se na distinção formulada por Wilhelm Dilthey entre explicar (erklären) e compreender (verstehen), que são as bases da sociologia compreensiva.
No entanto, embora os dois teóricos — e ainda podemos acrescentar o materialismo histórico de Karl Marx — não concordem entre si quanto à coerção dos fatos sociais, as duas explicações acima demonstradas, correndo o risco de uma simplificação exacerbada, auxiliam na compreensão de que seja qual for o grupo social, o indivíduo, seja por motivação seja por coerção, vive sob as bases do ethos compartilhado por todos.
BENTHO, Esdras Costa. A Família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
LÉVI-STRAUSS, C. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.
HARRIS, R. Laird (et al.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
BENETTI, Santos. Sexualidade e Erotismo na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 23.
SCHMIDT, Werner H. Introduccion al Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1983, p. 49.
WERBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora da UnB, v. 1, 1991,[ pp. 15,16.]
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