sábado, 10 de julho de 2010
Prezado professor, espero que sua aula inaugural desse novo trimestre tenha sido uma bênção. Tive a grata oportunidade de ministrar no Centro Evangelístico Internacional de Icaraí, em Niterói, para toda a igreja que se reuniu em uma classe única. Posso seguramente afirmar o que já disse no post introdutório sobre a lição do trimestre: estamos diante de uma oportunidade única. Principalmente por sermos pentecostais, é nosso dever buscar aprofundarmo-nos acerca do tema, pois acreditamos na atualidade dos dons espirituais e a profecia (mesmo sendo diferente da do ministério veterotestamentário), é uma das principais atividades e/ou manifestações espirituais em nosso meio. Aproveito o ensejo, para recomendar o livro do trimestre (homônimo do tema da revista), escrito pelo também comentarista da lição, pastor Esequias Soares. Trata-se de uma obra sui generis entre os pentecostais e inédita na CPAD. Constitui-se em um importante recurso para o professor não somente para esse trimestre, mas como fonte perene de estudos ulteriores.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, é importante destacar o sentido da expressão “natureza” que caracteriza a lição: “tipo, característica, espécie, qualidade”. Assim, pode-se afirmar que a atividade profética (particularmente a de Israel) é de uma espécie, de um tipo, de uma característica, ou de uma qualidade em relação à outra prática supostamente similar. Como já foi adiantado, a atividade profética é algo que precede a existência da própria nação de Israel, o que colocaria o povo de Deus como plagiador das práticas ocultistas de outras nações. Contudo, pensando de acordo com uma estrutura bíblica de “criação, queda e redenção”, é possível alinhar-se ao filósofo cristão holandês, Herman Dooyeweerd, em sua percepção de que o “pecado não pode destruir algo da criação de Deus, mas apenas dar-lhe uma direção apóstata”.1 Assim, as práticas divinatórias, augúricas e místicas da antiguidade, nada mais eram que uma distorção do desejo que o ser humano nutre por estabelecer um relacionamento com a divindade.
A ATIVIDADE PROFÉTICA ANTERIOR A ISRAEL
Uma das mais controversas dimensões do assunto, diz respeito à possibilidade de Deus ter “aproveitado” o ministério profético que Abraão supostamente adquirira antes de seu encontro com o Todo-Poderoso. Teria o pai da fé e “amigo de Deus” um dom profético ― “natural” ou lhe dado por algum deus pagão ― que exercia no panteão familiar (Js 24.2)? Ou será que no momento de sua chamada pelo Senhor Deus, Abraão recebeu o ministério profético? É possível que a designação profeta tivesse relação com o fato de naquele momento ele poder servir como intermediário entre Abimeleque e o Eterno? Derek Kidner, comentando a passagem de Gênesis 20.7, afirma que em uma “religião pagã, a santidade de um profeta acercava-se mais da magia do que da moralidade (cf. Nm 22:6). Assim o leitor pode ver melhor do que Abimeleque quão abaixo de suas prerrogativas Abraão tinha caído ao falar enganosamente, e pode comparar o vexame desta intercessão forçada com a glória da oração por Sodoma”.2
O ponto extremamente importante, é conhecer as práticas místicas que haviam nas religiões e povos antigos para perceber a distinção que existe quando comparadas com o que o Senhor instituiu através do seu Espírito, usando os patriarcas, o legislador Moisés, culminado no profetismo judaico. Um rápido vislumbre da própria designação para o “porta-voz” de uma divindade fornece um insight valioso acerca do assunto:
O termo grego profetes estava ligado aos oráculos da antiga Grécia, entre eles os mais famosos eram o de Zeus, em Dodona e o de Apolo, em Delfos. Eram santuários onde se proferiam as respostas às pessoas que consultavam essas divindades mitológicas da antiguidade. Esses templos aparecem nos poemas homéricos Ilíada e Odisseia. O oráculo era também a resposta em si, muitas vezes era enigmática e confusa. No caso de Delfos, a profetisa de Apolo, a Pítia, dava a resposta em forma de sons inarticulados e enigmáticos de maneira que o consulente ficava confuso. Diante de uma mensagem incompreensível, entrava em cena oficiais do santuário como intérprete ou tradutor, eram chamados profetes, sem a ideia de inspiração e nem de vaticinador das coisas futuras. Platão declara o seguinte a respeito deles: “intérpretes de palavras e visões misteriosas; o nome mais certo, portanto, não será o de adivinho, mas o de profeta das coisas reveladas pela adivinhação” (Timeu 72b). Em Píndaro e em Homero eles são chamados de poetas.3
Quando Paulo discursou no Areópago, em Atenas, ele mencionou “alguns de vossos poetas” (At 17.28), aludindo a dois poetas estóicos: “Arauto (de Soloi, na Cilícia; primeira metade do século III a.C.; Phainomena 5) e Cleantes (de Assos, na Ásia Menor; 304-233 a. C.; Hino a Zeus 4), para os quais Zeus é o λόγος ou o princípio cósmico que tudo anima”.4 Ainda acerca desse assunto, Esdras Bentho, afirma o seguinte sobre o texto de Tito 1.12 (“Um deles, seu próprio profeta, disse: Os cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos”.): “Esse hexâmetro é atribuído a Epimênides de Cnossos, poeta do século VI a.C., escritor de poemas Minos, Teogonia e uma coleção de oráculos. A tradição grega chamava-o de profeta, outros consideravam-no poeta, e até mesmo reformador religioso”.5 Assim, havia um intercâmbio linguístico entre os gregos para profeta e poeta. O importante a ser destacado, como já foi dito, é o fato de que a atividade profética era algo anterior à existência de Israel. A Enciclopédia Mirador Internacional, por exemplo, menciona no verbete “profetismo”, os profetas áulicos e cultuais, dizendo o seguinte acerca dessa “classe” de profetas:
Situam-se entre os primeiros exemplos de profetismo as funções exercidas por Neferrhu e Ipuwer no Egito antigo, provavelmente entre 2180 e 2040 a.C. Tratava-se de profetas áulicos, já que participavam de uma estrutura de poder teocrática. Diferente é o caso do profetismo na Frígia, entre os séc. XII e VII a.C., representado pelas pitonisas que integravam o culto de Cibele e Átis e cuja tradição chega ao império romano. Também de caráter cultual são os profetas gregos de Delfos (séc. VII a.C. a IV d.C.), ligados aos oráculos de Apolo Delfino.6
O profeta Neferrohu, mencionado acima, é, segundo Eric Voegelin, responsável por uma profecia de um “governante messiânico” que, “por suas qualidades pessoais” traz a esperança de dias mais felizes para o Egito que estava, à época, sob o reinado de “Amenemhet I (2000-1970 a.C.)” 7:
Então é assim que um rei virá,pertencente ao sul, Ameni, o triunfante, seu nome.
Ele é filho de uma mulher da terra da Núbia;
É nascido no Alto Egito...
Alegrai-vos, ó povo de seu tempo!
O filho do homem fará seu nome para todo o sempre.
Aqueles que são inclinados para o mal e que tramam rebeliões suavizaram sua fala
por medo dele.
Os asiáticos cairão à sua espada e os líbios cairão à sua chama.Os rebeldes pertencem à sua ira e os de coração traiçoeiro ao temor a ele.8Ao falar sobre os “antecedentes da profecia bíblica”, o professor da Universidade de Granada, José Luíz Sicre, afirma que A existência do fenômeno profético fora de Israel, inclusive em culturas diferentes das do Antigo Oriente, é um fato que ninguém põe em dúvida hoje em dia. Passaram-se os anos polêmicos em que parecia necessário negar a existência de um profetismo extrabíblico para salvar a inspiração dos profetas hebreus. Ou,inversamente, os anos em que se encontravam profetas em toda a parte para negar a pretensa revelação de Deus através destes personagens de Israel. O estudo da questão tornou-se mais científico, menos polêmico e mais apologético. O fato de terem existido profetas fora de Israel não implica que os profetas bíblicos carecessem de inspiração; e também não lhes tira a originalidade.9
Uma particularidade acerca do assunto que chama a atenção é o fato de a atividade profética nas religiões dos povos estranhos a Israel, ser majoritariamente exercida por mulheres.10 Assunto que será retomado quando a oportunidade pedir. Os traços gerais do profetismo ― independentemente de ser ou não o de Israel ― são elencados em número de quatro pela Enciclopédia Mirador Internacional:
Embora varie de cultura para cultura, o profetismo tem traços peculiares, entre os quais se manifestam: a) uma ‘eleição’ transcendente, não opção voluntária; b) um modo de ser alienado, isto é, em que o sujeito (o profeta) é objeto ou ‘porta-voz’ de uma entidade sobrenatural; c) vocação pessoal, que não envolve compromissos de classe (com um grupo de sacerdotes, por exemplo); d) emissão de uma mensagem de interesse coletivo, quer se dirija a um povo determinado, quer a toda a humanidade.11Assim, penso que a ideia principal ao se realizar uma pesquisa como essa, consiste principalmente em se fazer uma análise das atuais manifestações extáticas que o movimento pentecostal atualmente experimenta, em alguns lugares, e verificar se estão mais parecidas com que havia antes do profetismo em Israel, do que com o próprio movimento instituído por Deus no Antigo Testamento.
EXTATICISMO
O pesquisador da história israelita e filósofo, Eric Voegelin, ressalta que o texto de 1 Samuel 9.9 fornece pistas acerca da diferença substancial que existe entre o profetismo em Israel e nas demais nações:O mesmo interesse pela relação de Saul com Deus aparece na história de seu encontro com os profetas. Essa história requer uma breve explicação — ainda mais porque até mesmo o historiador israelita julgou necessário acrescentar uma ou duas notas de rodapé arqueológicas a fim de torná-la inteligível para seus próprios contemporâneos. Saul “encontrou com um grupo de profetas” (10,10). Esses profetas, porém, não pertenciam ao mesmo tipo que os grandes profetas do século VIII [período em que surge “oficialmente” o movimento conhecido como profetismo em Israel] e seguintes. Os grandes profetas, na verdade, deram continuidade ao tipo que na época de Saul era representado por um homem como Samuel. E o historiador enfatiza o ponto; pois ao falar de Samuel, o vidente, ele acrescentou que “um profeta [nabi] era antigamente chamado de vidente [roeh]” 9,9. Assim, alguma importância parece ter sido atribuída à diferença entre os videntes que apenas mais tarde vieram a ser chamados de profetas e os profetas do grupo. Mostrou-se difícil, porém, descrever os dois tipos com alguma precisão. Foram deitas tentativas de distingui-los como tipos de alucinações auditivas e visuais, como intérpretes de sonhos ou sinais e arrebatados por êxtase, como comunicantes com divindades menores e com o Yahweh nacional, ou por seus métodos de induzir o estado extático. Nenhuma das distinções foi satisfatória, uma vez que, invariavelmente, falhavam em um ou outro caso específico. Ainda assim, a diferença, como dissemos, deve ter sido importante, já que os historiadores israelitas a anotaram expressamente. Desse modo, temos de voltar à distinção feita nas próprias passagens de Samuel: os videntes e os grandes profetas eram pessoas solitárias, enquanto os profetas que Saul encontrou eram um “grupo”. Essa é, de fato, uma diferença de tal importância que uma busca por outras características distintivas parece supérflua. Pois o profetismo coletivo, baseado num êxtase contagioso, era um fenômeno difundido na Ásia Menor que chegou até a civilização helênica na forma de cultos orgiásticos de Dioniso, ao passo que não era característico da história israelita mais antiga. Seu aparecimento na época de Saul indicaria uma penetração do êxtase baálico no javismo, paralelamente à fusão de cananeus e de hebreus javistas no novo Israel. Além disso, o próprio Saul esteve exposto a acessos extáticos por contágio, enquanto, no caso de Gedeão, o ruah de Yahweh ainda descia sobre o líder numa experiência solitária.12
É evidente que não partilho da cosmovisão religiosa de Voegelin e não concordo com ele em todos os aspectos. Não obstante, como escreveu Esequias Soares, “os profetas hebreus falavam em um estado ativo e consciente”13, ao passo que, segundo o mesmo autor, a chamada “experiência extática era comum entre os místicos e profetas pagãos”.14 A conclusão que o autor chega, é que Não houve, portanto, nos profetas hebreus auto-estimulação. Nenhum deles tomou a iniciativa para obter revelação e nem há indicação de que algum deles tenha perdido o controle das faculdades mentais e racionais. Havia, sim, de fato, o fator externo à razão humana e superior a ela. Os oráculos dos profetas do Deus de Israel sobre o futuro baseiam-se em fatos reais concretos, do dia a dia.15 Acredito que seja necessário e urgente fazer uma reflexão nas aulas durante esse trimestre, acerca das “desculpas” que as pessoas oferecem quando são questionadas sobre um comportamento duvidoso ante uma suposta possessão espiritual. Meninices e outras infantilidades acontecem em todos os lugares e devem ser corrigidas. Agora, a manipulação da liderança e da própria congregação, unida a uma malversação dos dons, são coisas intoleráveis e inadmissíveis em uma igreja que está completando o seu primeiro século.
NOTAS
1 DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. 1.ed. São Paulo: Hagnos, 2010, p.201.
2 KIDNER, Derek. Gênesis. Introdução e comentário. 1.ed. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1979, p.128.
3 SILVA, Esequias Soares da. O Ministério Profético na Bíblia. A voz de Deus na Terra. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p.32.
4 HAUBECK, Wilfrid e SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Mateus a Apocalipse. 1.ed. São Paulo: Tergumim e Hagnos, 2009, p.829.
5 BENTHO, Esdras Costa. Hermenêutica Fácil e Descomplicada. 14.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p.197.
6 Enciclopédia Mirador Internacional. ed. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, , p.9326.
7 VOEGELIN, Eric. Ordem e História. Israel e a Revelação. V.1. 1.ed. São Paulo: Loyola, 2009, p.151.
8 PRITCHARD, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1950, p.445. (Nota do autor).
9 SICRE, José Luíz. Profetismo em Israel. O profeta, os profetas, a mensagem. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p.203.
10 MONTERO, Santiago. Deusas e Adivinhas. Mulher e adivinhação na Roma Antiga. 1.ed. São Paulo: Musa, 1999.
11 Enciclopédia Mirador Internacional. ed. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, , p.9326.
12 VOEGELIN, Eric. Ordem e História. Israel e a Revelação. V.1. 1.ed. São Paulo: Loyola, 2009, pp.286-7.
13 SILVA, Esequias Soares da. O Ministério Profético na Bíblia. A voz de Deus na Terra. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p.35.
14 Ibid., p.39.
15 Ibid., p.48.
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