A religião do cristão: não hipócrita, mas real

domingo, 5 de junho de 2011

 

 

A religião do cristão: não hipócrita, mas real Mt 6:1-6; 16-18

Jesus começou a falar no monte, descrevendo nas bem-aventuranças os elementos essenciais do caráter cristão, e prosseguiu indicando, através das metáforas do sal e da luz, a influência para o bem que os cristãos exercerão na comunidade, se pos­suírem esse caráter. Descreveu, então, a justiça do cristão, que deve exceder à justiça dos escribas e fariseus na aceitação de todas as implicações da lei de Deus, sem esquivar-se de coisa alguma e sem criar limites artificiais. A justiça do cristão é uma justiça sem limites. Deve ter liberdade de penetrar além dos nossos atos e palavras, até o nosso coração, pensamentos e moti­vações, e deve nos dirigir até mesmo nessas partes escondidas e secretas.

Depois, Jesus continua a ensinar sobre a "justiça". O capí­tulo 6 começa (literalmente) com "Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens". A palavra usada nos me­lhores manuscritos é dikaiosuné, a mesma de 5:6 e 20. Mas muito embora a palavra seja a mesma, a ênfase mudou de lugar. Antes, a "justiça" estava relacionada com a bondade, a pureza, a honestidade e o amor; agora, relaciona-se com práticas tais como esmolas, oração e jejum. Assim, Jesus passa da justiça moral do cristão para a sua justiça "religiosa". A maior parte das versões reconhece esta mudança de assunto. A ERAB diz: "Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens", e a BLH: "Cuidado! Não pratiquem seus deveres religiosos em público a fim de serem vistos pelos outros."

É importante reconhecer que, de acordo com Jesus Cristo, a "justiça" tem estas duas dimensões, a moral e a religiosa. Algumas pessoas falam em comportamento como se achassem que sua maior obrigação na vida cristã estivesse na esfera da ativi­dade religiosa, quer em público (frequência à igreja) ou em par­ticular (exercícios devocionais). Outros reagiram tão fortemente contra essa superenfatização da piedade, que falam de Cristia­nismo "sem religião". Para eles, a igreja é a cidade secular, e a oração um encontro cheio de amor com os seus vizinhos. Mas não há necessidade de se escolher entre a piedade e a morali­dade, entre a devoção religiosa na igreja e o serviço ativo no mundo, entre o amor a Deus e o amor ao nosso próximo, já que Jesus ensinou que a "justiça" cristã autêntica inclui as duas coisas.

Mais ainda, nas duas esferas da justiça, Jesus profere seu chamado insistente a seus discípulos para que sejam diferentes. Em Mateus 5, ele ensina que a nossa justiça deve ser maior do que a dos fariseus (porque eles obedeciam à letra da lei, en­quanto a nossa obediência deve incluir o nosso coração) e maior também (na forma do amor) do que a dos pagãos (porque eles se amam uns aos outros, enquanto o nosso amor deve incluir nossos inimigos também). Mas em Mateus 6, no que se refere à justiça "religiosa", ele traça os mesmos dois contrastes. Ele fala primeiro da ostentação religiosa e diz: Não sereis como os hipócritas (v. 5). Depois prossegue referindo-se ao formalismo mecânico dos pagãos e diz: Não vos assemelheis, pois, a eles (v. 8). Assim, novamente, os cristãos têm de ser diferentes, tanto dos fariseus quanto dos pagãos, dos religiosos e dos irreligiosos, da igreja e do mundo. Que os cristãos não devem se conformar com o mundo é um conceito familiar no Novo Testamento. O que muitas vezes passa desapercebido é que Jesus também viu (e previu) o mundanismo da própria igreja, e exortou os seus discípulos a não se conformarem tampouco com a igreja formal, constituindo, pelo contrário, uma comunidade cristã distinta em sua vida e prática, separada da religião organizada, uma ecclësiola (igrejinha) na ecclesia. A diferença essencial na reli­gião como na moralidade é que a justiça cristã autêntica não é uma simples manifestação, mas uma coisa escondida no coração.

6:1 Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte não tereis galar­dão junto de vosso Pai celeste.

A advertência fundamental de Jesus é contra o praticar a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. A primeira vista, estas palavras parecem contradizer o seu man­damento anterior: "Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam . . ." Nos dois versículos, ele fala de praticar boas obras "diante dos homens" e, em ambos, o objetivo fica declarado, isto é, ser "vistos" por eles. Mas, no primeiro caso, ele ordena que o façam, enquanto que, no outro, ele o proíbe. Como resolver esta discrepância? A contradição é apenas verbal, não substancial. A pista está no fato de Jesus falar sobre diferentes pecados. Foi nossa covardia humana que o levou a dizer: "Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens", e a nossa vaidade humana que o fez dizer que tomás­semos o cuidado de não praticar nossa piedade diante dos ho­mens. A. B. Bruce resume a questão muito bem, escrevendo que devemos "mostrar quando tentados a esconder" e "esconder quando tentados a mostrar". Nossas boas obras devem ser pú­blicas para que a nossa luz brilhe; nossa devoção religiosa deve ser secreta para não nos vangloriarmos dela. Além disso, a fina­lidade de ambas as instruções de Jesus é a mesma, isto é, a glória de Deus. Por que devemos manter secreta a nossa piedade? É para que essa glória seja dada a Deus e não aos homens. Por que devemos fazer a nossa luz brilhar e praticar abertamente as boas obras? Para que os homens possam glorificar ao nosso Pai celestial.

Os três exemplos de justiça "religiosa" apresentados por Jesus — as esmolas, a oração e o jejum — aparecem de alguma forma em todas as religiões. Destacam-se, por exemplo, no Alcorão. Certamente esperava-se de todos os judeus que dessem esmolas aos pobres, que orassem e jejuassem; e todos os judeus devotos O faziam. Evidentemente, Jesus esperava que os seus discípulos fizessem o mesmo, já que ele não começou cada parágrafo di­zendo: "Se vocês derem esmolas, se orarem, se jejuarem, então façam assim . . .", mas "Quando" vocês o fizerem . . . (vs. 2, 5, 16). Ele tomou como certo que assim os seus discípulos agiriam.

Mais ainda, este trio de obrigações religiosas expressa, num certo grau, nossa obrigação para com Deus, para com os outros e para com nós mesmos, pois dar esmolas é procurar servir ao nosso próximo, especialmente ao necessitado. Orar é buscar a face de Deus e reconhecer a nossa dependência dele. E jejuar (isto é, abster-se de alimentos por razões espirituais) é, pelo menos em parte, um modo de autonegação e autodisciplina. Jesus não levantou a questão se os seus discípulos iam se ocupar destas coisas mas, presumindo que o fariam, ensina-lhes por quê e como fazê-lo.

Os três parágrafos seguem um padrão idêntico. Em imagens pitorescas e deliberadamente humorísticas, Jesus pinta um quadro do hipócrita religioso. É o quadro da ostentação. Esse tal recebe a recompensa que deseja, o aplauso dos homens. Com este, ele contrasta o cristão, que age em segredo, e que deseja, em recompensa, tão somente a bênção de Deus, que é o seu Pai celeste e que vê em segredo.

1. A esmola cristã (vs. 2-4)

Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já rece­beram a recompensa. 3Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua esquerda o que faz a tua direita; 4para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai que vê em secreto, te recompensará.

O Velho Testamento ensina muito sobre a compaixão para com os pobres. A palavra grega para esmola no versículo 2 (eleèmosuné) significa um ato de misericórdia ou piedade. Conside­rando que o nosso Deus é um Deus misericordioso, como Jesus acabou de enfatizar, "benigno até para com os ingratos e maus” (Lc 6:35, 36. cf. 5:45,48.), o seu povo deve também ser bom e misericordioso. Jesus obvia­mente esperava que os seus discípulos fossem doadores generosos. Suas palavras condenam "a egoísta sovinice de muitos", como diz Ryle.

Mas só generosidade não basta. Nosso Senhor está preocu­pado do começo ao fim deste Sermão com as motivações, com os pensamentos escondidos no coração. Em sua exposição do sexto e do sétimo mandamentos, ele mostra que ambos, o homi­cídio e o adultério, podem ser cometidos no coração, sendo que a ira injustificada é uma espécie de homicídio do coração e os olhares concupiscentes uma espécie de adultério do coração. Na questão das esmolas, ele tem a mesma preocupação sobre os pensamentos secretos. A questão não é tanto sobre o que a mão está fazendo (passando algum dinheiro ou um cheque), mas o que o coração está pensando enquanto a mão age. Há três possibilidades: ou estamos querendo o louvor dos homens, ou preservamos o nosso anonimato mas silenciosamente congratulamo-nos pelo que fizemos, ou estamos apenas desejosos da aprovação de nosso Pai divino.

Uma fome voraz pelo louvor dos homens era o pecado habitual dos fariseus. "Vós . . . aceitais glória uns dos outros", Jesus lhes disse, "e contudo, não procurais a glória que vem do Deus único" (Jo5:44.). Semelhantemente João, o evangelista, comentou: "Amaram mais a glória dos homens, do que a glória de Deus." (Jo 12:43.) Tão insaciável era o apetite deles pelos elogios humanos que prejudicava totalmente suas esmolas. Jesus ridicularizou o modo como eles as transformavam num acontecimento público. Ele descreve um fariseu pomposo a caminho do templo ou da sina­goga, onde vai depositar o seu dinheiro numa caixa especial, ou indo levar uma esmola aos pobres. Na sua frente, marcham os tocadores de trombeta, rapidamente atraindo a multidão com suas clarinadas. "Eles davam a entender, sem dúvida", comenta Calvino, "que era para chamar a atenção dos pobres, pois desculpas nunca faltam; mas era perfeitamente óbvio que buscavam os aplausos e os elogios". Realmente não importa se os fariseus às vezes agiam assim literalmente, ou se Jesus estava pintando uma caricatura engraçada. De qualquer forma, ele estava condenado a nossa ansiedade infantil por ser grandemente estimados pelos homens. Como Spurgeon disse: "Ficar com um centavo em uma das mãos e uma trombeta na outra é atitude de hipócrita."

E "hipocrisia" é a palavra que Jesus usou para caracterizar essa exibição. No grego clássico, hupokrités era, primeiro, um orador e, então, um ator. Assim, figuradamente, a palavra pas­sou a ser aplicada a qualquer pessoa que trata o mundo como se fosse um palco onde ela executa um papel. Deixa de lado a sua verdadeira identidade e assume uma identidade falsa. Já não é mais ela mesma, mas disfarça-se, personalizando alguma outra pessoa. Usa uma máscara. No teatro, não há mal algum ou mentira da parte dos atores que executam os seus papéis. É uma situação convencional. O auditório sabe que veio assistir a uma peça; não é iludido. O problema com o hipócrita religioso, por outro lado, é que deliberadamente pretende enganar as pessoas. E como um ator na sua representação (de modo que o que vemos não é a pessoa real, mas um papel, uma máscara, um disfarce), mas é totalmente diferente do ator neste sentido: participa de alguma prática religiosa, que é uma atividade real, e a transforma em algo diferente daquilo que é na realidade, isto é, numa peça faz-de-conta, numa exibição teatral diante de um auditório. E tudo é feito para receber aplausos.

É fácil ridicularizar aqueles judeus fariseus do primeiro século. Nosso farisaísmo cristão não é tão engraçado. Nós não contra­tamos uma fanfarra para tocar toda vez que contribuímos para uma igreja ou uma obra de caridade. Mas, usando a metáfora familiar, gostamos de "tocar a nossa própria trombeta". Faz bem ao nosso ego ver o nosso nome nas listas de contribuintes de obras de caridade e de mantenedores de boas causas. Caímos exatamente na mesma tentação: chamamos a atenção para a nossa esmola para sermos "glorificados pelos homens".

Dessas pessoas que buscam a glória dos homens, Jesus disse com ênfase: já receberam a recompensa. O verbo traduzido por "receberam" (apechö) era, naquele tempo, um termo téc­nico usado nas transações comerciais; significava "receber uma quantia total e dar um recibo por ela". Era frequentemente usado nos papiros. Portanto, os hipócritas que procuram aplausos não hão de recebê-los, mas "já terão recebido toda a recom­pensa". Nada mais têm a receber, nada mais que o juízo no último dia.

Tendo proibido a seus discípulos de contribuírem para os necessitados na maneira ostentosa dos fariseus, Jesus lhes diz, agora, qual a forma cristã, que é uma maneira secreta. Ele a expressa através de outra negativa: Tu, porém, ao dares esmola, ignore a tua esquerda o que faz a tua direita; para que a tua esmola fique em secreto. A mão direita é normalmente a mão da atividade. Assim, Jesus presume que vamos usá-la ao dar a nossa esmola. Então, ele acrescenta que a nossa mão esquerda não deve ficar olhando. Não é difícil captar o significado. Não só não devemos contar a outras pessoas sobre a nossa contri­buição cristã mas, num certo sentido, não devemos sequer contar a nós mesmos. Não devemos ser autoconscientes da nossa es­mola, pois essa atitude rapidamente deteriora-se em justiça própria. Tão sutil é a injustiça do coração que é possível tomar­mos passos deliberados para manter nossa esmola em segredo, e simultaneamente ficarmos pensando nisso com um espírito de autogratificação.

Seria difícil exagerar a perversidade disso, pois a esmola é uma atividade real que envolve gente real com necessidades reais. Seu propósito é aliviar o desespero dos necessitados. A palavra grega para o ato de dar esmolas, como já vimos, indica que é uma obra de misericórdia. Pois é possível transformar um ato de misericórdia em um ato de vaidade, de modo que a nossa motivação principal não seja o benefício da pessoa que recebe a oferta, mas o nosso próprio. O altruísmo foi desalojado por um egoísmo deformado.

Portanto, a fim de "mortificar" ou condenar à morte nossa vaidade iníqua, Jesus insiste conosco para que mantenhamos a nossa esmola em segredo, tanto dos outros como também de nós mesmos. "Com a frase 'ignore a tua esquerda o que faz a tua direita' ", escreve Bonhoeffer, "proclama-se a morte do velho homem", pois o egocentrismo pertence à vida do velho homem; a nova vida em Cristo é de incalculável generosidade. Naturalmente, não é possível obedecer a esta ordem de Jesus com precisão literal. Se mantemos uma contabilidade e planejamos nossas contribuições, como devem fazer todos os cristãos conscientes, temos de saber quanto estamos ofertando. Não podemos fechar os olhos ao assinarmos os nossos cheques! Não obstante, logo depois que a oferta for decidida e feita, deve­remos esquecê-la imediatamente para estarmos em harmonia com o ensinamento de Jesus. Não deveremos ficar pensando nela a fim de nos deleitarmos, nem nos orgulharmos sobre a generosidade, a disciplina ou o zelo por retidão da nossa oferta. A dádiva cristã deve ser marcada pelo auto sacrifício e pela abnegação, não pela autogratificação.

O que deveríamos procurar, quando damos aos necessitados, não ê o louvor dos homens, nem um alicerce para a nossa auto aprovação mas, antes, a aprovação de Deus. Isto implica na referência que nosso Senhor fez das mãos direita e esquerda. "Com esta expressão", escreveu Calvino, "ele quis dizer que devemos ficar satisfeitos por termos a Deus como única teste­munha". Embora possamos manter a oferta em segredo diante dos outros e, até certo ponto, de nós mesmos, não podemos es­condê-la de Deus. Nenhum segredo fica encoberto diante dele. Teu Pai que vê em segredo, te recompensará.

Algumas pessoas rebelam-se contra este ensinamento de Jesus. Elas dizem que não esperam recompensa, seja qual for, de pes­soa alguma. Mais do que isto, acham que a promessa que nosso Senhor fez de recompensar é incoerente. Como pode ele proibir o desejo do louvor dos outros ou de nós mesmos para, depois, incentivar-nos a procurar o de Deus? Naturalmente, dizem, isto só muda a forma da vaidade. Será que não poderíamos dar simplesmente pela necessidade de dar? Buscar o louvor de quem quer que seja — dos homens, do ego ou de Deus — é prejudicar o ato, acham.

A primeira razão por que tais argumentos estão errados rela­ciona-se com a natureza das recompensas. Quando as pessoas dizem que a ideia da recompensa lhes é desagradável, sempre suspeito de que o quadro que têm em mente é a concessão de prêmios numa escola, com os troféus de prata cintilando na mesa sobre o estrado e todo o mundo batendo palmas! O contraste não foi estabelecido entre a esmola secreta e a recompensa pública, mas entre os homens, que não veem nem recompensam a esmola, e Deus, que faz as duas coisas.

C. S. Lewis escreveu sabiamente em um ensaio intitulado "O Esplendor da Glória" (The Weight of Glory) o seguinte: "Não devemos ficar perturbados com os incrédulos que dizem que esta promessa de recompensa torna a vida cristã um negócio mercenário. Há diferentes tipos de recompensa. Existe a recom­pensa que não tem conexão natural com as coisas que se faz para recebê-la, e é totalmente estranha aos desejos que deveriam acompanhar aquelas coisas. O dinheiro não é a recompensa natural do amor; é por isso que dizemos que um homem é mer­cenário quando se casa com uma mulher por causa do dinheiro dela. Mas o casamento é a recompensa apropriada para quem realmente ama, e este não é mercenário quando o deseja." Do mesmo modo, poderíamos dizer que uma taça de prata não é uma recompensa muito apropriada para um escolar que estu­dou muito, mas uma bolsa para a universidade seria o ideal. C. S. Lewis assim conclui este argumento: "As devidas recom­pensas não são simplesmente adicionadas à atividade pela qual foram concedidas, mas são a própria atividade em consu­mação."

Qual é, então, a "recompensa" que o Pai celeste dá àquele que faz a sua dádiva em secreto? Não é pública nem, necessa­riamente, futura. Provavelmente a única recompensa que o ver­dadeiro amor deseja quando dá ao necessitado é ver o alívio deste. Quando, por meio de suas dádivas, o faminto é alimen­tado, o nu é vestido, o doente é curado, o oprimido é libertado e o perdido é salvo, o amor que provocou a dádiva fica satis­feito. Esse amor (que é o próprio amor de Deus expresso através do homem) traz consigo as suas próprias alegrias secretas e não espera outra recompensa.

Resumindo, nossas dádivas cristãs não devem ser feitas nem diante dos homens (na esperança de que comecem a bater pal­mas), nem diante de nós mesmos (com a nossa mão esquerda aplaudindo a generosidade da nossa mão direita), mas "diante de Deus", que vê o íntimo de nosso coração e nos recompensa com a descoberta de que, usando as palavras de Jesus, "Mais bem-aventurado é dar que receber.( At 20:35.)"

2. A oração do cristão (vs. 5 e 6)

E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 6Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em secreto; e teu Pai que vê em secreto, te recompensará.

Neste segundo exemplo de justiça "religiosa", Jesus descreve dois homens orando. Novamente, a diferença básica é entre a hipocrisia e a realidade. Ele põe em contraste o motivo das orações e as suas recompensas.

O que ele diz sobre os hipócritas parece ótimo à primeira vista: "gostam de orar". Mas infelizmente não é da oração que eles gostam, nem do Deus a quem supostamente estão orando. Não, eles gostam de si mesmos e da oportunidade que a oração pública lhes dá de se exibirem.

Naturalmente, a disciplina da oração regular é uma coisa boa; todos os judeus devotos oravam três vezes por dia, como Daniel (Dn 6:10.). E não havia nada de errado em ficar de pé para orar, pois era a posição costumeira dos judeus para isto. Nem estavam necessariamente errados quando oravam nos cantos das praças ou nas sinagogas, se sua motivação fosse acabar com a segre­gação da religião e expressar que reconheciam Deus estar pre­sente mesmo fora dos lugares santos, isto é, na vida secular cotidiana. Mas Jesus desmascarou as suas verdadeiras moti­vações, quando ficavam de pé na sinagoga ou nas ruas com as mãos erguidas para os céus, a fim de serem vistos dos homens. Por trás da sua piedade, espreitava o seu orgulho. O que real­mente desejavam era o aplauso. E o conseguiam. "Já receberam a recompensa."

O farisaísmo religioso não está morto. A acusação de hipo­crisia tem sido jogada inúmeras vezes sobre nós, os frequentadores de igrejas. É possível ir à igreja pelos mesmos motivos errados que levavam o fariseu à sinagoga: não para adorar a Deus, mas para obter uma reputação de piedade. É possível vangloriar-nos de nossas devoções particulares pelo mesmo motivo. O que se destaca é a perversidade de toda prática hipócrita. Dar louvor a Deus, tal como dar esmolas aos homens, é um ato autêntico por si só. Um outro motivo qualquer destrói os dois. Degrada o serviço prestado a Deus e aos homens a uma espécie desprezível de autosserviço. A religião e a caridade trans­formam-se em uma exibição. Como podemos fingir que estamos louvando a Deus, quando, na realidade, estamos preocupados com o louvor dos homens?

Como, então, os cristãos devem orar? Entra no teu quarto, e, fechada a porta, orarás, disse Jesus. Devemos fechar a porta para não sermos perturbados e distraídos, mas também para fugir aos olhos dos homens e para ficarmos a sós com Deus. Só então podemos obedecer à ordem seguinte do Senhor: Orarás a teu Pai que está em secreto, ou, como a Bíblia de Jerusalém esclarece: "que está naquele lugar secreto". Nosso Pai está lá, à nossa espera. Nada destrói mais uma oração do que olhares furtivos para os espectadores humanos, como também nada a enriquece mais do que o senso da presença de Deus. Pois ele não vê a nossa aparência externa, apenas o coração; não a pessoa que está orando, apenas o motivo por que o faz. A essência da oração cristã é buscar a Deus. Por trás de toda oração verda­deira está a conversa com Deus, que se inicia assim:

"Ao meu coração me ocorre: Buscai a minha presença; Buscarei, pois, Senhor, A tua presença." Sl 27:8

Nós o buscamos para reconhecê-lo tal como ele é, Deus, o Cria­dor; Deus, o Senhor; Deus, o Juiz; Deus, nosso Pai celestial através de Jesus Cristo, nosso Salvador. Desejamos encontrá-lo no lugar secreto a fim de nos ajoelharmos diante dele em hu­milde adoração, amor e confiança. Então, Jesus prossegue, "teu Pai que vê em secreto, te recompensará." R. V. G. Tasker destaca que a palavra grega para "quarto" no qual devemos nos retirar para orar (tameion) "era empregada para designar a sala-depósito onde podiam guardar-se os tesouros". A impli­cação pode ser, então, que "já existem tesouros à sua espera" quando for orar. Naturalmente, as recompensas secretas da oração são tantas, que não se poderiam enumerar. Nas palavras do apóstolo Paulo, quando clamamos "Aba, Pai", o Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito de que realmente somos filhos de Deus, e recebemos forte certeza de sua paternidade e amor (Rm 5:5; 8:16.). Ele nos ilumina com a luz do seu rosto e nos dá a paz (Nm 6:26). Ele refrigera a nossa alma, satisfaz a nossa fome, mitiga a nossa sede. Sabemos que não somos mais órfãos, porque o Pai nos adotou; não somos mais filhos pródigos, porque fomos per­doados; não estamos mais perdidos, porque voltamos para casa.

A ênfase de nosso Senhor sobre a necessidade do segredo não deve ser levada a extremos. Interpretá-lo com literalismo rígido seria incorrer no próprio farisaísmo contra o qual ele está nos advertindo. Se todas as nossas orações fossem mantidas em segredo, teríamos de desistir de ir à igreja, de orar em família e nas reuniões de oração. Sua referência aqui é à oração parti­cular. As palavras gregas estão no singular, como indica a ERAB: "Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai." Jesus ainda não falara sobre a oração pública. Quando o faz, diz-nos para orarmos no plu­ral, "Nosso Pai", e ninguém pode fazer esta oração sozinho, em segredo.

Em lugar de ficarmos preocupados com a técnica do sigilo, precisamos lembrar-nos de que o propósito da ênfase de Jesus sobre o "segredo" na oração é purificar nossas motivações. Assim como devemos dar nossas ofertas com amor genuíno pelas pes­soas, também devemos orar com genuíno amor a Deus. Jamais deveríamos usar tais exercícios como um piedoso disfarce para o narcisismo.

3. O jejum do cristão (vs. 16-18)

Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos ho­mens que jejuam. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa,17Tu porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto; 18com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e, sim, ao teu Pai em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.

Os fariseus jejuavam "duas vezes por semana” (Lc 18:12.), às segundas e às quintas-feiras. João Batista e seus discípulos também jejua­vam regularmente, até mesmo "com frequência", mas os discí­pulos de Jesus não jejuavam (Mt 9:14; Lc 5:33.). Por que então, nestes versículos do Sermão do Monte, Jesus não só esperava que seus segui­dores jejuassem, mas também deu instruções sobre como fazê-lo? Eis aqui uma passagem comumente ignorada. Suspeito que alguns de nós vivemos nossa vida cristã como se estes versículos tivessem sido arrancados de nossas Bíblias. A maioria dos cris­tãos destaca a necessidade da oração diária e da contribuição sacrificial, mas poucos insistem no jejum. O Cristianismo evan­gélico, em particular, cuja ênfase característica está na religião interior, do coração e do espírito, tem dificuldade em render-se a uma prática física exterior como o jejum. Não é um hábito do Velho Testamento, perguntamos, ordenado por Moisés para o Dia da Expiação, e exigido após o retorno do exílio da Babi­lônia em outros dias do ano, mas agora revogado por Cristo? Não vieram perguntar a Jesus: "Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, mas os teus discípulos não jejuam?" E o jejum não é uma prática católico-romana, a ponto de a igreja medieval elaborar um calendário sofisticado de "dias de festa" e "dias de jejum"? Não está também associado a um ponto de vista supersticioso da missa e da "comunhão em jejum"?

Podemos dizer "sim" a todas estas perguntas. Mas é fácil sermos seletivos em nosso conhecimento e uso das Escrituras e da história da Igreja. Eis alguns outros fatos que devemos considerar: o próprio Jesus, nosso Senhor e Mestre, jejuou por quarenta dias e quarenta noites, no deserto; em resposta à per­gunta que o povo lhe fez, disse: "Dias virão ... em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias eles (os meus discípulos) hão de jejuar. (Mt 9:15)" No Sermão do Monte ele nos disse como jejuar, pressupondo que o faríamos. E em Atos e nas cartas do No­vo Testamento, temos diversas referências aos apóstolos jejuando. Portanto, não podemos ignorar o jejum como se fosse uma prática do Velho Testamento revogada no Novo, ou como uma prática católica rejeitada pelos protestantes.

Primeiro, então, o que é o jejum? Falando estritamente, é uma total abstenção de alimento. Mas pode ser legitimamente ampliado para uma abstenção parcial ou total, durante períodos de tempo mais curtos ou mais longos. Daí, naturalmente, vem o nome da primeira refeição do dia, "desjejum", uma vez que "quebramos o jejum" do período da noite, quando não come­mos nada.

Não temos dúvidas de que, nas Escrituras, o jejum se relacio­nava de diversos modos com a renúncia e a autodisciplina. Em primeiro lugar e principalmente, "jejuar" e "humilhar-se diante de Deus" são termos virtualmente equivalentes (por exemplo, Sl 35:13; Is 58:3, 5). Às vezes era uma expressão de penitência por pecados passados. Quando as pessoas estavam profunda­mente amarguradas por seu pecado e culpa, choravam e jejua­vam. Por exemplo, Neemias reuniu o povo "com jejum e pano de saco" e "fizeram confissão dos seus pecados"; os habitantes de Nínive arrependeram-se quando Jonas pregou, proclamaram um jejum e vestiram-se de pano de saco; Daniel buscou a Deus "com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza", orou ao Senhor seu Deus e fez confissão dos pecados do seu povo; e Saulo de Tarso, depois de sua conversão, foi levado a penitenciar-se de sua perseguição a Cristo, pois durante três dias não comeu nem bebeu. (Ne 9:1, 2; Jn 3:5; Dn 9:2ss; 10:2ss; At 9:9.)

Às vezes, mesmo hoje em dia, quando o povo de Deus está convencido do pecado e é levado ao arrependimento, não é coisa fora de propósito que, em sinal de penitência e tristeza, chore e jejue. A homília anglicana intitulada "Das Boas Obras, e do Jejum" dá a entender que esse é o modo de aplicarmos a nós mesmos a palavra de Jesus: "Dias virão em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar." Refere-se a Cristo, o noivo, que, pode-se dizer, está "conosco" na festa do casamento, quan­do nos regozijamos nele e na sua salvação. Mas o noivo pode ser "tirado" e a festa interrompida quando somos oprimidos pela derrota, pela aflição e pela adversidade. "Então é a hora adequada", diz a homília, "para o homem humilhar-se diante do Deus Todo-Poderoso, jejuando, chorando e gemendo pelos seus pecados, com um coração contrito."

Não devemos, entretanto, nos humilhar diante de Deus apenas em arrependimento por pecados passados, mas também na dependência dele para a misericórdia futura. E aqui, novamente, o jejum pode expressar a nossa humildade diante de Deus. Pois se "o arrependimento e o jejum" andam juntos nas Escrituras, "a oração e o jejum" são ainda mais frequentemente reunidos. Não constitui uma prática regular, pois nem sempre jejuamos quando oramos, mas algo ocasional e especial, quando preci­samos buscar a Deus para orientação ou bênção especial e, en­tão, nos abstemos do alimento e de outras distrações para fazê-lo. Assim, Moisés jejuou no monte Sinai imediatamente depois que foi renovada a aliança pela qual Deus aceitou a Israel como seu povo; Josafá, vendo que os exércitos de Moabe e Amom avançavam sobre ele, "se pôs a buscar ao Senhor; e apregoou jejum em todo o Judá"; a rainha Ester, antes de arriscar a sua vida apresentando-se diante do rei, insistiu com Mordecai que reunisse os judeus e que jejuassem por ela, enquanto ela e suas criadas faziam o mesmo; Esdras proclamou um jejum antes de conduzir os exilados de volta a Jerusalém, "para lhe pedirmos jornada feliz para nós, para nossos filhos e para tudo o que era nosso"; e, como já mencionamos, nosso Senhor Jesus jejuou exatamente antes de começar o seu ministério público; e a igreja primitiva seguiu lhe o exemplo; a igreja de Antioquia jejuou antes de Paulo e Barnabé serem enviados em sua primeira viagem missionária; e eles próprios, antes de designar anciãos em cada nova igreja que iam organizando (Êx 24:18; 2Cr 20:lss; Et 4:16; Ed 8:21ss; Mt 4:l,2; At l3:l-3; 14:23.). São evidências claras de que empreendimentos especiais exigem orações especiais, e que orações especiais envolvem o jejum.

Ainda há outro motivo bíblico para o jejum. A fome é um dos apetites básicos do homem, e a gula um pecado capital. Portanto, "o domínio próprio" não tem significado se não incluir o controle de nossos corpos, e é impossível sem a autodisciplina. Paulo usa o atleta como exemplo. Para participar dos jogos este tem de estar fisicamente apto, e por isso treina. Seu treinamento inclui a disciplina de um regime alimentar adequado, sono e exercí­cios: "Todo atleta em tudo se domina". E os cristãos parti­cipantes da competição cristã devem fazer o mesmo. Paulo escreve sobre "esmurrar" o seu corpo (deixando-o todo roxo) e sobre subjugá-lo (conduzindo-o como um escravo) (1Co 9:24-27). Isto não se refere ao masoquismo (sentir prazer na dor), nem ao falso ascetismo (tal como usar uma camisa áspera ou dormir sobre uma cama de pregos), nem a uma tentativa de ganhar mérito como os fariseus no templo (Lc 18:12.). Paulo rejeitaria todas essas ideias, e nós também. Não temos motivos para "punir" nossos corpos, pois são criação de Deus; mas devemos discipliná-los para que nos obedeçam. E o jejum, sendo uma abstinência voluntária de alimento, é uma forma de aumentar o nosso autocontrole.

Uma outra razão para o jejum poderia ainda ser mencionada, isto é, deliberadamente deixar de participar do que poderíamos comer para partilhá-lo (ou o seu preço) com os subnutridos. Temos apoio bíblico para esta prática. Jó podia dizer que não comeu "o que os pobres desejavam", pois o partilhou com órfãos e viúvas (31:16ss). Em contraste, quando, através de Isaías, Deus con­denou o jejum hipócrita dos habitantes de Jerusalém, disse que eles procuravam satisfazer o seu próprio prazer, oprimindo seus empregados no dia em que jejuais. Isto significava, em parte, que não havia correlação entre suas mentes e suas ações, entre o alimento a que renunciavam e a necessidade material dos seus empregados. A religião deles era sem justiça ou caridade. Por isso Deus disse: "Não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade . . . deixes livres os oprimidos . . .? . . . Não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados . . .?" (58:lss.) Jesus deu a entender alguma coisa parecida quando falou do rico fazendo festas suntuosas todos os dias, enquanto o mendigo jazia à sua porta, desejando ser alimentado com as migalhas que caíam de sua mesa (Lc 16:19-31.).

Não é difícil encontrar outras aplicações mais atualizadas. No século dezesseis, a Inglaterra abstinha-se de carne em dias determinados e comia peixe em seu lugar, não por prescrição da Igreja mas do Estado, a fim de ajudar a manter "as cidades pesqueiras que bordejavam o mar" e, assim, reduzir "o preço dos gêneros alimentícios e assim ajudar na manutenção dos pobres". Nos nossos dias, o desespero de milhares de famintos nos países em desenvolvimento é trazido diariamente para as telas de nossos aparelhos de TV. Passar ocasionalmente (ou, melhor, regularmente) com uma refeição mais frugal, ou deixar de tomar uma refeição uma ou duas vezes por semana, e sobre­tudo evitar o excesso de peso e o comer demais são formas de jejum que agradam a Deus porque expressam um sentimento de solidariedade com os pobres.

Portanto, por arrependimento ou por oração, por autodisciplina ou por amor solidário, temos boas razões bíblicas para o jejum. Sejam quais forem as nossas razões, Jesus assumiu que o jejum teria lugar na vida cristã. Ele se preocupou com a nossa contribuição, com a nossa oração e com o nosso jejum para que nós não façamos como os hipócritas, que chamavam a atenção para si mesmos. Eles costumavam desfigurar o rosto e se mos­travam contristados. A palavra traduzida por "desfigurar" (aphanizo) significa literalmente "fazer desaparecer" e portanto "tornar invisível ou irreconhecível". Eles provavelmente negli­genciavam a higiene pessoal, ou cobriam a cabeça com panos de saco, ou talvez passavam cinza no rosto para ficarem mais pálidos, mais abatidos, mais tristes e, em consequência, visivel­mente "santos". Tudo isso para que o seu jejum fosse visto e conhecido de todos. A admiração dos que passavam por eles seria a única recompensa obtida. "Mas quanto a vocês, meus discípulos", Jesus prosseguiu, quando jejuarem, unjam a cabeça e lavem o rosto, isto é, "penteiem o cabelo e lavem o rosto". Jesus não estava recomendando nada fora do comum, como se agora eles tivessem de assumir uma expressão de alegria espe­cial. Pois, como Calvino comentou acertadamente, "Cristo não nos afasta de um tipo de hipocrisia para nos levar a outro". Ele presumiu que eles se lavavam e se penteavam todos os dias e, nos dias de jejum, fariam como de costume para que ninguém suspeitasse que estavam jejuando. Então, novamente, teu Pai, que vê em segredo, te recompensará. O propósito do jejum não é fazer propaganda de nós mesmos, mas disciplinar-nos; não obter uma reputação, mas expressar a nossa humildade diante de Deus e a nossa preocupação com os outros que estão pas­sando necessidade. Se esses propósitos forem cumpridos, se­remos bem recompensados.

Examinando estes versículos, fica evidente que Jesus esteve fazendo o contraste entre duas alternativas de piedade, a dos fariseus e a cristã. A piedade dos fariseus é ostentosa, motivada pela vaidade e recompensada pelos homens. A piedade cristã é secreta, motivada pela humildade e recompensada por Deus.

Para assimilarmos a alternativa ainda mais claramente, seria útil examinar a causa e o efeito de ambas as formas. Primeiro, o efeito. A religião hipócrita é perversa porque é destrutiva. Vimos que a oração, a contribuição e o jejum são todas ativi­dades autênticas por si mesmas. Orar é buscar a Deus, dar é servir aos outros, jejuar é disciplinar-se. Mas o efeito da hipo­crisia é destruir a integridade destas práticas, transformando cada uma delas em oportunidades de auto exibição.

Qual é, então, a causa? Se pudermos isolar isto, poderemos também encontrar o remédio. Embora um dos refrãos desta passagem seja "diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles", não é com os homens que o hipócrita fica obcecado, mas consigo mesmo. "Em última análise", escreve o Dr. Lloyd-Jones, "nosso único motivo para agradar aos homens que nos rodeiam é agradar a nós mesmos". O remédio, portanto, é óbvio. Precisamos ter tal consciência de Deus que deixemos de ser autoconscientes. E é nisto que Jesus se concentra.

Talvez eu possa explicar isso dizendo que o absoluto é algo impossível para qualquer um de nós. É impossível fazer, dizer ou pensar alguma coisa sem a presença de espectadores, pois, mesmo quando nenhum ser humano está presente, Deus está nos vendo; não como uma espécie de policial celeste "bisbilhotando" a fim de nos pegar, mas como o nosso amoroso Pai celeste, que sempre está procurando oportunidades para nos abençoar. Portanto, a pergunta é: que espectadores nos são mais importantes, os terrestres ou o celeste, os homens ou Deus? O hipócrita realiza seus rituais "com o fim de ser visto pelos ho­mens". O verbo grego é theathènai. Isto é, estão em um teatro, representando. Sua religião é um espetáculo público. O ver­dadeiro cristão também está consciente de que está sendo obser­vado, mas, para ele, o auditório é Deus.

Mas por que, alguém pode perguntar, auditórios diferentes provocam representações diferentes? A resposta é certamente a seguinte: podemos blefar diante de um auditório humano; ele pode ser iludido pela nossa representação. Podemos enganá-lo, dando a impressão de que somos genuínos em nossas dádivas, nossas orações, nosso jejum, quando na realidade estamos apenas representando. Mas de Deus não se zomba; não podemos enganar a Deus. Ele olha para o coração. Por isso, qualquer coisa que façamos para sermos vistos pelos homens somente degrada o nosso ato, enquanto que fazê-lo para ser visto por Deus enobrece-o.

Por isso, devemos escolher nosso auditório com cuidado. Se preferimos espectadores humanos, perderemos nossa integridade cristã. O mesmo acontecerá se nós mesmos nos tornarmos o nosso auditório. Parafraseando Bonhoeffer: "É ainda mais pernicioso se eu mesmo me transformar no espectador de minha representação na oração ... Eu posso apresentar um show muito bonito para mim mesmo, na intimidade do meu próprio quar­to." Devemos preferir que Deus seja o nosso auditório. Como Jesus observava as pessoas que colocavam suas ofertas no tesouro do templo (Mc l2:41ss.), assim Deus nos observa quando ofertamos; quando oramos e jejuamos em secreto, ele está ali, no lugar secreto. Deus odeia a hipocrisia, mas ama a realidade. É por isso que, apenas quando estamos conscientes de sua presença, a nossa dádiva, a nossa oração e o nosso jejum são reais.

 

Bibliografia J. R. W. Stott

Fonte: EBD AREIA BRANCA

 

 

 

A religião do cristão: não hipócrita, mas real

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